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Intercorrências domiciliares mais frequentes: Insônia

Anna Carolina Afonso Cardoso Andrade, Bruna Ballarotti, Diângeli Soares Camargo

Pontos-chave

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Objetivos de aprendizagem

Ao final do capítulo, o leitor deverá ser capaz de:

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Definição

Entende-se por insônia a dificuldade de iniciar ou manter o sono, bem como a presença de sono não reparador.1 O sono é responsável por uma série de processos fisiológicos restauradores e pela manutenção de uma boa funcionalidade durante o período de vigília. É também uma importante dimensão do bem-estar e da saúde, influenciando de forma significativa a qualidade de vida do indivíduo.2

As perturbações do sono são frequentemente comórbidas a diversos transtornos físicos e mentais, muitos dos quais prevalentes na população restrita, dependente de cuidados domiciliares. Pessoas portadoras de síndromes demenciais, transtornos do humor, dor crônica etc. costumam apresentar queixa de insônia.3

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Fisiologia do sono e causas de insônia

A compreensão básica da fisiologia do sono pode auxiliar o profissional clínico a entender suas perturbações. O sono é um estado fisiológico e cíclico que se constitui de duas fases principais: o sono REM (rapid eye movement sleep) e o sono NREM (non rapid eye movement sleep). Essas duas fases se intercalam diversas vezes durante a noite, constituindo o chamado ciclo de sono REM-NREM. Em adultos jovens e saudáveis, cerca de um quinto do tempo de sono é constituído pelo sono REM, fase marcada por intensa atividade cerebral, hipotonia ou atonia muscular e pelos sonhos. O sono NREM se subdivide em três fases (I, II e III), com aumento progressivo de profundidade. Essa fase do sono é marcada pelo relaxamento muscular com manutenção do tônus, menor atividade cerebral e secreção hormonal.4

Normalmente o sono se inicia na fase I do sono NREM, após um breve período de latência. Em poucos minutos o indivíduo progride para a fase II, onde permanece por cerca de 30 a 60 minutos. Após esse período instala-se o sono de ondas lentas, expresso nas fases III do sono NREM. Essa é a fase mais profunda do sono e engloba hoje o que no passado eram as fases III e IV do sono NREM. Após cerca de 90 minutos, o indivíduo atinge a fase de sono REM, completando um primeiro ciclo de sono REM-NREM. Esses ciclos se repetem cerca de cinco vezes durante o período de sono. A fase III do sono NREM predomina na primeira metade da noite, mas quase não ocorre na segunda metade e próximo ao amanhecer.5

Os idosos são uma população relevante para a atenção domiciliar, uma vez que características epidemiológicas, fisiológicas, sociais e funcionais típicas da idade os leva frequentemente a receber cuidados em domicílio, de forma permanente ou transitória. O sono nessa faixa etária possui particularidades que merecem ser conhecidas pelos profissionais de saúde.

O envelhecimento está associado a mudanças na arquitetura do sono, mas essas mudanças não são consideradas patológicas, tampouco se deve partir do pressuposto de que é “normal” que o sono seja ruim nessa faixa etária.6 Diversos estudos demonstram que idosos saudáveis raramente apresentam distúrbios do sono e que idosos que dormem entre 6 e 9 horas têm melhor cognição, saúde física e qualidade de vida em comparação a outros adultos, de qualquer idade, que dormem menos horas ou a mais.6,7

As mudanças arquiteturais do sono, contudo, podem contribuir para a percepção de sono insatisfatório e dificultar essa faixa etária de atingir a quantidade necessária de sono. As principais alterações fisiológicas do sono associadas ao processo de envelhecimento estão descritas no Quadro 1.6

Quadro 1 Alterações fisiológicas do sono associadas ao envelhecimento

Fonte: elaborado pelos autores.

Nessa fase da vida, observa-se também um fenômeno chamado de “avanço de fase de sono”, causado pelo enfraquecimento do ciclo circadiano sono-vigília. Esse fenômeno é caracterizado por maior sonolência no final da tarde e nas primeiras horas da noite, bem como despertares mais precoces. Assim, muitos idosos tendem a adormecer entre as 19 e 21 horas e a despertar cerca de 8 horas depois, entre 3 e 5 da manhã. Nesses casos, os pacientes conseguem obter uma quantidade e eficiência de sono adequadas, mas as expectativas culturais a respeito do sono os levam a acreditar que esse padrão de sono é disfuncional. Assim, os idosos lutam contra o seu período de maior sonolência, na expectativa de que, ao atrasar o horário de início de sono, irão acordar mais tarde no dia seguinte, podendo, portanto, acompanhar o ritmo dos seus familiares. Entretanto, essas medidas geralmente são infrutíferas, uma vez que mesmo combatendo sua sonolência fisiológica e indo dormir mais tarde o idoso mantém o despertar precoce, em decorrência do avanço de fase.6,7 Dessa forma, observa-se que o desejo de se encaixar na rotina do lar implica pior qualidade de sono do que a modificação circadiana em si.

O ciclo circadiano sono-vigília em humanos é controlado pelo núcleo supraquiasmático do hipotálamo anterior (NSHA), que por sua vez responde a estímulos endógenos, como a temperatura corporal e a melatonina, e a estímulos exógenos, como a luminosidade. Idosos e pessoas restritas, em geral, realizam menos atividade a céu aberto, o que compromete a sua exposição à luminosidade natural, afetando o ciclo circadiano de sono-vigília. Observa-se também a deterioração do NSHA como resultado do processo de envelhecimento.

Pessoas restritas têm suas rotinas grandemente impactadas, o que muitas vezes acarreta uma série de prejuízos em termos de higiene do sono. É importante que a equipe de atenção domiciliar esteja atenta a esse fator como importante causador de insônia.

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Diagnóstico

O Quadro 2 apresenta os diagnósticos diferenciais de insônia mais relevantes para a prática clínica.

Quadro 2 Diagnósticos diferenciais de insônia

Fonte: elaborado pelos autores.

Segundo o DSM-V, a insônia se caracteriza pela queixa de insatisfação com a qualidade ou quantidade do sono, associada a pelo menos um dos seguintes fatores: a) dificuldade de iniciar o sono; b) dificuldade de manter o sono; c) despertar precoce pela manhã com dificuldade de retomar o sono. É necessário que a perturbação cause prejuízo em algum domínio da vida (sociais, profissionais, comportamentais etc.) e que não possa ser bem explicado por outra condição. Na prática, é um diagnóstico de exclusão.1,3

A insônia com frequência correlaciona-se a outros transtornos, podendo ser físicos ou mentais, bem como decorrentes do uso de medicamentos e substâncias de abuso. Algumas condições associadas à insônia incluem transtorno depressivo, transtorno de ansiedade, doença de Parkinson, doença de Huntington, hipotireoidismo, hipertireoidismo, doenças musculoesqueléticas dolorosas etc.3,8

Algumas classificações subdividem a insônia como primária ou secundária, porém essa classificação foi substituída no ICSD-3 (International Classification of Sleep Disorders), pois essa diferenciação não auxiliava na acurácia diagnóstica. Atualmente prefere-se classificar a insônia em aguda ou crônica a depender da sua duração. A insônia aguda dura de dias a semanas, por um período geralmente inferior a 3 meses. A insônia crônica tem duração superior a 3 meses e ocorre pelo menos três vezes por semana.

As parassonias podem ocorrer no sono não REM (ex.: sonambulismo, despertar confusional e terror noturno) e no sono REM (ex.: distúrbio comportamental do sono REM, paralisia do sono isolada recorrente).9

Os distúrbios respiratórios do sono incluem os distúrbios obstrutivos e centrais. A SAOS (síndrome da apneia obstrutiva do sono), comum em nosso meio, é percebida pelo paciente ou pelo familiar que observa seu sono. É causa frequente de disfunção diurna, em decorrência da fragmentação do sono e fator de risco para doenças cardiovasculares importantes, como o acidente vascular encefálico e infarto agudo do miocárdio. Está frequentemente associada à obesidade, e seu diagnóstico pode ser confirmado pelo exame de polissonografia.3,10

Os distúrbios dos movimentos do sono incluem o bruxismo (ranger de dentes), a síndrome dos movimentos periódicos dos membros (caracterizada por arremessos das pernas durante o sono, provocando despertares e fragmentação do sono) e a síndrome das pernas inquietas (descrita como um desconforto das pernas associada a uma urgência em movê-las).11-13

Por fim, os distúrbios do ciclo circadiano incluem o atraso da fase de sono, o avanço da fase de sono, o padrão irregular do ciclo sono-vigília, a síndrome do ciclo vigília-sono diferente das 24 horas, entre outros.14 O Quadro 3 apresenta informações sobre alguns distúrbios dessa categoria.

Quadro 3 Distúrbios do ciclo circadiano

Fonte: Smith AKA, 2017.14

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Medidas preventivas

O Quadro 4 lista algumas estratégias preventivas para a insônia.15,16

Quadro 4 Medidas preventivas para insônia

Fonte: Ohayon MM, 2002;15 Ohayon MM; Sagales T, 2010.16

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Tratamento

As intervenções psicológicas e comportamentais são a primeira linha de tratamento recomendada tanto para as insônias primárias crônicas quanto para as secundárias.17,18 Essas intervenções incluem aconselhamento sobre higiene do sono, a prática de exercícios físicos regulares e intervenções cognitivo-comportamentais, como a terapia cognitivo-comportamental para insônia. Essas intervenções incluem terapia de relaxamento (como relaxamento muscular e biofeedback), terapia do controle de estímulos (que visa abreviar outras atividades incompatíveis com o sono, reassociando a ida para o quarto ou para a cama com o ato de dormir), terapia de restrição de sono (que visa a que o tempo despendido na cama se aproxime à duração do período de sono), terapia cognitiva (que visa trabalhar crenças e atitudes inadequadas em relação ao sono, como falsas expectativas em relação ao tempo de sono necessário ou amplificação de suas consequências), terapia de intenção paradoxal (que visa diminuir a ansiedade pré-sono ao parar de tentar dormir quando não se está com sono na cama).19 A combinação dessas medidas se mostrou mais efetiva do que separadamente.

A implantação dessas medidas pode ser muito desafiadora no contexto da atenção domiciliar, seja pela limitação motora e dependência para cuidados que parte dessas pessoas apresenta, seja pelas condições da habitação que podem envolver uma proporção alta de pessoas por cômodo vivendo naquele domicílio, pouca exposição à luz solar, exposição a temperaturas extremas, exposição a barulho intenso ou outras limitações num contexto de vulnerabilidade. É muito importante que a equipe de atenção domiciliar esteja atenta para a construção de um plano compartilhado centrado na pessoa, que leve o contexto da pessoa sob cuidado em consideração, para maiores chances de sucesso no manejo da insônia e sua qualidade de vida.

Tratamento farmacológico

A terapia medicamentosa para insônia, quando necessária, deve ser complementar às intervenções cognitivo-comportamentais reconhecidas como primeira linha de tratamento.20 Sua prescrição é considerada indicada quando houver falha do tratamento não farmacológico por no mínimo 4 semanas ou situações em que o impacto na funcionalidade justifique uma medida mais imediata.

É importante destacar que a Choosing Wisely Campaign recomenda que não se utilize como primeira escolha o tratamento farmacológico, com benzodiazepínicos, outros sedativos hipnóticos, antipsicóticos em adultos mais velhos ou adultos com insônia crônica.21 As medicações hipnóticas e sedativas indicadas devem ser usadas de forma breve, no máximo por 4 semanas e na menor dose efetiva. As possibilidades de tratamento medicamentoso são descritas no Quadro 5.

Quadro 5 Opções farmacológicas para o manejo da insônia

Fonte: elaborado pelos autores.

Anti-histamínicos, analgésicos, barbitúricos e hidrato de cloral não são recomendados, por falta de evidências da efetividade e/ou baixa segurança. Valeriana e melatonina carecem de maiores evidências de benefício e segurança.

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Encaminhamento

Pacientes com má resposta ao tratamento proposto pela equipe de atenção domiciliar, sobretudo aqueles com comprometimento significativo da qualidade de vida, podem se beneficiar de referência à atenção secundária. Pacientes com distúrbios respiratórios do sono demandam avaliação especializada para orientação terapêutica.

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Referências

  1. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. Porto Alegre: Artmed; 2014.
  2. Lopes JM, Roncalli AG. Fatores biopsicossociais associados à função do sono autopercebido em idosos brasileiros: análise de um inquérito nacional. Rev Bras Epidemiol. 2020;23:1-11.
  3. Carvalho F, Silva RG, Queiroz V. Perturbações do sono. In: Gusso GDF, Lopes JMC. Tratado de Medicina de Família e Comunidade – Princípios, Formação e Prática. Porto Alegre: Artmed; 2019. p. 2075-83.
  4. Gillam T. Understanding primary insomnia in older people. Nurs Older People. 2009;21(3):30-3.
  5. Fernandes RMF. O sono normal. Medicina (Ribeirão Preto). 2006;39(2):157-68.
  6. Miner B, Kryger MG. Sleep in the Aging Population. Sleep Med Clin. 2017;12(1):311-8.
  7. Neikrug AB, Ancoli-Israel S. Sleep disorders in the older adult: a mini-review. Gerontology. 2010;56(2):181-9.
  8. Junior LRP, Bacelar A, Pinto MCR. Diagnóstico da Insônia. In: Haddad FLM, Gregório LC. Manual do residente: medicina do sono. São Paulo: Manole; 2017. p 147-61.
  9. Moreira GA, Santos CF. Parassonias do sono não REM e do sono REM. In: Haddad FLM, Gregório LC. Manual do residente: medicina do sono. São Paulo: Manole; 2017. p. 201-7.
  10. Haddad FLM, Sguillar DA. Síndrome da apneia obstrutiva do sono. In: Haddad FLM, Gregório LC. Manual do residente: medicina do sono. São Paulo: Manole; 2017. p. 41-8.
  11. Fabbro CD, Filho MM. Bruxismo do sono. In: Haddad FLM, Gregório LC. Manual do residente: medicina do sono. São Paulo: Manole; 2017. p. 207-16.
  12. Prado GF, Carvalho LBC, Prado LBF. Movimentos periódicos dos membros: diagnóstico e tratamento. In: Haddad FLM, Gregório LC. Manual do residente: medicina do sono. São Paulo: Manole; 2017. p. 216-8.
  13. Prado GF, Carvalho LBC, Prado LBF. Síndrome das pernas inquietas: doença de Willis-Ekbon. In: Haddad FLM, Gregório LC. Manual do residente: medicina do sono. São Paulo: Manole; 2017. p. 207-16.
  14. Smith AKA. Distúrbios circadianos: visão geral e prática. In: Haddad FLM, Gregório LC. Manual do residente: medicina do sono. São Paulo: Manole; 2017. p. 225-32.
  15. Ohayon MM. Epidemiology of insomnia: what we know and what we still need to learn. Sleep Med Rev. 2002;6(2):97-111.
  16. Ohayon MM, Sagales T. Prevalência de insônia e características do sono na população em geral da Espanha. Sleep Med. 2010;11(10):1010-8.
  17. Edinger JD, Arnedt JT, Bertisch SM, Carney CE, Harrington JJ, Lichstein KL, et al. Behavioral and psychological treatments for chronic insomnia disorder in adults: an American Academy of Sleep Medicine clinical practice guideline. J Clin Sleep Med. 2021;17(2):255-62.
  18. Salisbury-Afshar E. Management of Insomnia Disorder in Adults. Am Fam Physician. 2018;98(5):319-22.
  19. Passos GS, Tufik S, Santana MG, Poyares D, Mello MT. Tratamento não farmacológico para a insônia crônica. Braz J Psychiatry. 2007;29(3):279-82.
  20. Matheson EM, Hainer BL. Insomnia: Pharmacologic Therapy. Am Fam Physician. 2017;96(1):29-35.
  21. American Academy of Sleep Medicine. Choosing Wisely. Five Things Physicians and Patients Should Question. [acesso em abril de 2022]. Disponível em: https://www.choosingwisely.org/societies/american-academy-of-sleep-medicine/
  22. Sys J, van Cleynenbreugel S, Deschodt M, van der Linden L, Tournoy J. Efficacy and safety of non-benzodiazepine and non-Z-drug hypnotic medication for insomnia in older people: a systematic literature review. Eur J Clin Pharmacol. 2020;76(3):363-81.
  23. Schroeck JL, Ford J, Conway EL, Kurtzhalts KE, Gee ME, Vollmer KA, et al. Review of Safety and Efficacy of Sleep Medicines in Older Adults. Clin Ther. 2016;38(11):2340-72.
  24. Bonnet MH, Benca R, Eichel AF. Evaluation and diagnosis of insomnia in adults. Waltham: UpToDate; 2022.

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