Cuidados paliativos: rotação de opioides
Raif Restivo Simão, Felipe Carvalho Barros Sousa, Glauco Cabral Marinho Plens, Daniel Costa Guimarães

Sumário

Definição

  • Troca de um opioide para outro, ou da via de administração da medicação, objetivando promover melhor efeito analgésico e/ou reduzir efeitos adversos.

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Conceitos gerais

  • Os opioides constituem-se em uma classe de medicações comumente utilizadas para analgesia em pacientes graves, em especial (porém não unicamente) nos casos de pacientes com doenças oncológicas.
  • Tal classe faz parte do manejo de dor proposto pela Organização Mundial de Saúde (OMS), por meio da escada analgésica (Figura 1). O conceito da escada analgésica consiste no escalonamento da terapia analgésica por degraus – primeiro, se propõe o uso de analgésicos e anti-inflamatórios. Caso a dor persista, deve-se subir um degrau e associar opioides fracos ou opioides fortes em baixa dose. Se mesmo assim a dor persistir, sobe-se mais um degrau e substituem-se os opioides fracos por opioides fortes. Em todos os degraus, é indicado o uso de adjuvantes para controle álgico, a depender do tipo de dor apresentada pelo paciente.

Figura 1 Escada analgésica de dor da Organização Mundial da Saúde (OMS).

AINE: anti-inflamatórios não esteroides.

Fonte: extraída e adaptada de WHO; Rangel O; Telles C, 2012.

  • Portanto, é importante saber as indicações do uso de opioides no manejo de dor, as opções a serem utilizadas em casos específicos, os efeitos colaterais desses medicamentos (Tabela 1), as interações medicamentosas entre opioides e outras medicações frequentemente utilizadas, conforme abaixo, e como transicionar a dose de um opioide para outro (ver item “Como fazer – passo a passo” a seguir), uma vez que todas essas habilidades fazem parte da prática clínica cotidiana.
    • Interações medicamentosas que podem alterar o efeito de morfina, justificando ajustes de doses:
      • Reduzem efeito da morfina: carbamazepina, fenitoína, fenobarbital, rifampicina, benzodiazepínicos.
      • Aumentam efeito da morfina: fenotiazinas, antidepressivos tricíclicos, cimetidina.

Tabela 1 Comparação entre opioides.

* Não há dose máxima estabelecida, porém deve-se ficar atento à presença de sinais de intoxicação.

** A metadona possui meia-vida longa (30 horas). Sendo assim, o controle álgico adequado em geral só é obtido de 2 a 3 dias após a primeira dose.

*** Usualmente, demora-se 12 a 24 horas para atingir a concentração sérica adequada de fentanila. Em razão da aplicação transdérmica, a absorção é reduzida em pacientes vasoconstritos e aumentada em pacientes com vasodilatação periférica. Não se deve cortar o adesivo de fentanila em nenhuma circunstância.

EV: via endovenosa; SC: via subcutânea; TD: via transdérmica; VO: via oral; VR: via retal.

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Efeitos colaterais

  • Euforia.
  • Sedação.
  • Xerostomia.
  • Depressão respiratória.
  • Miose.
  • Supressão do reflexo de tosse.
  • Tontura.
  • Fadiga.
  • Retenção urinária.
  • Náuseas e vômitos.
  • Obstipação.
  • Contração da vesícula biliar.
  • Sudorese.
  • Rubor.
  • Prurido.
  • Broncoconstrição.
  • Prolongamento do intervalo QT.

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Situações específicas

Insuficiência renal

Tabela 2 Ajuste de dose de opioides em pacientes com insuficiência renal.

Insuficiência hepática

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Indicações

  • A rotação de opioides deve ser realizada nos seguintes casos:
    • Controle álgico inadequado.
    • Efeitos colaterais.
    • Interações medicamentosas potencialmente danosas.
    • Custos e disponibilidade de medicações.
    • Necessidade de troca da via de administração.
    • Hiperalgesia induzida por opioide.
    • Tolerância.
    • Variabilidade genética (pacientes podem ser metabolizadores rápidos ou lentos, tendo maior predisposição a um controle álgico inadequado ou à intoxicação por opioides, respectivamente).
    • Opiofobia (medo de utilizar morfina, que pode vir do próprio paciente ou de familiares, na maioria das vezes por associar o uso de tal medicação ao conceito de fim de vida).
  • Ao propor a rotação de opioides, deve-se considerar se esta é realmente a melhor estratégia a ser adotada. É imperativo considerar também outras possibilidades, como a associação de outras classes de medicações e a otimização da terapia não farmacológica.

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Checklist

  • Antes de fazer a rotação, deve-se verificar:
    • Adesão ao tratamento.
    • Acesso à medicação.
    • Otimização de medicações adjuvantes.
    • Paliação adequada dos efeitos colaterais decorrentes do uso do opioide.
    • Opiofobia.
  • É importante corrigir erros em algum(ns) desses pontos antes de fazer a rotação, a fim de garantir que esta seja bem indicada.

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Como fazer – passo a passo

  • Calcular a dose total diária (DTD) de opioide utilizada nas últimas 24 horas (incluindo resgates).
  • Converter para dose equivalente de morfina VO (considerada como “padrão” para cálculos de conversão de doses de opioides).
  • Calcular a dose do novo opioide utilizando tabelas de equivalência analgésica (Tabelas 3 e 4)*.
  • Diminuir a dose do novo opioide em 20 a 30% (tolerância cruzada).
  • Dividir a DTD do novo opioide pelo número de doses que serão administradas em um dia.
  • Prescrever doses de resgate (cada dose de resgate deve corresponder a 1/6 da DTD).
  • Recalcular a DTD todos os dias e atentar para efeitos adversos e sinais de intoxicação.

* Existe mais de uma tabela de equivalência analgésica. A tabela apresentada neste texto corresponde à utilizada na prática clínica dos autores. É importante ressaltar, porém, que essas tabelas nem sempre derivam de evidências cientificamente relevantes, razão pela qual podem existir discrepâncias entre diferentes fontes. Reforça-se, ainda, que as ações da equipe devem ser guiadas não apenas por essas tabelas, mas também – e principalmente – pela resposta clínica individual de cada paciente.

  • Obs. 1: ao contrário dos demais opioides, a metadona não possui relação de equivalência analgésica linear quando comparada com a morfina VO. Portanto, no caso da metadona, deve-se fazer o cálculo da dose utilizando a conversão da Tabela 5.
  • Obs. 2: existe uma regra prática para facilitar a conversão de doses entre morfina VO e fentanila TD. De acordo com essa regra, um adesivo de 25 mcg de fentanila corresponde à dose de 60 mg de morfina VO por dia.

Tabela 3 Equivalência analgésica.

EV: via endovenosa; SC: via subcutânea; TD: via transdérmica; VO: via oral.

Tabela 4 Exemplo de conversão de dose de fentanila EV para TD.

Tabela 5 Conversão de dose de metadona.

BUPRENORFINA

  • buprenorfina é um caso especial na rotação de opioides por ser um agonista parcial dos receptores opioides µ, podendo desencadear abstinência em pacientes usuários de agonistas completos, sendo necessários alguns cuidados na troca.
  • Ser um agonista parcial não significa que o potencial analgésico é fraco, inclusive alguns estudos mostram efeito igual ou maior neste quesito.
  • Devido à atuação completa nos receptores δ (delta) e κ (kappa), seu efeito é mais favorável no quesito de constipação, disforia, risco de abuso, depressão respiratória e transtornos de ideação suicida.
  • Recomendações sobre a conversão para esta droga são as seguintes:
    • Considerar iniciar um agonista alfa-2-adrenérgico (exemplo clonidina) para manejo da abstinência.
    • Suspender a dose do outro opioide na noite anterior.
    • Equivalente de morfina menor que 30 mg/dia: iniciar com o adesivo de 5 mcg/h.
    • Equivalente de morfina entre 30 e 80 mg/dia: iniciar com o adesivo de 10 mcg/h.
    • Equivalente de morfina maior que 90 mg/dia: iniciar com o adesivo de 20 mcg/h (maior dose recomendada).

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Prescrição na prática

  • Exemplo de prescrição (cada caso deve ser avaliado individualmente e a decisão deve ser tomada pelo médico responsável pelo caso).
  • Como exemplo, vamos realizar a rotação de opioides, visando a prescrever fentanila TD para um paciente fictício que esteja em uso de oxicodona 20 mg VO a cada 4 horas:
    • Calcular DTD: 20 mg x 6 tomadas diárias = 120 mg.
    • Converter para dose equivalente de morfina VO utilizando a Tabela 3: a relação entre morfina e oxicodona é de 2:1, portanto, 120 mg de oxicodona VO/dia equivalem a 240 mg de morfina VO/dia.
    • Para calcular a dose de fentanila TD, utilizamos novamente a Tabela 3 e verificamos que a relação entre morfina VO e fentanila TD é de 1:100, portanto, 240 mg de morfina VO/dia equivalem a 2,4 mg – ou seja, 2.400 mcg – de fentanila TD/dia. Por sua vez, 2.400 mcg divididos em 24 horas de aplicação resultam em 100 mcg/h.
    • Ao diminuir a dose em 25%, chegamos em 75 mcg/h de fentanila TD (100 x 0,75 = 75).
    • Como o adesivo de fentanila é de uso contínuo, e não dividido em horários, neste caso não é necessário dividir a DTD pelo número de doses a serem administradas durante o dia.
    • Prescrever doses de resgate com morfina. Caso seja escolhida a morfina VO para o resgate, a dose deve ser 1/6 da DTD = 40 mg VO.
    • Diariamente, deve-se avaliar o paciente e o controle álgico, para recalcular a dose de opioide necessária e procurar eventuais sinais ou sintomas de intoxicação.

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Referências

  1. Davis MP, Pasternak G, Behm B. Treating Chronic Pain: An Overview of Clinical Studies Centered on the Buprenorphine Option. Drugs. 2018;78(12):1211-28.
  2. Fallon M, Dierberger K, Leng M, Hall PS, Allende S, Sabar R, et al. An international, open-label, randomised trial comparing a two-step approach versus the standard three-step approach of the WHO analgesic ladder in patients with cancer. Ann Oncol. 2022;33(12):1296-1303.
  3. Filitz J, Griessinger N, Sittl R, Likar R, Schüttler J, Koppert W. Effects of intermittent hemodialysis on buprenorphine and norbuprenorphine plasma concentrations in chronic pain patients treated with transdermal buprenorphine. Eur J Pain. 2006;10(8):743-8.
  4. Hand CW, Sear JW, Uppington J, Ball MJ, McQuay HJ, Moore RA. Buprenorphine disposition in patients with renal impairment: single and continuous dosing, with special reference to metabolites. Br J Anaesth. 1990;64(3):276-82.
  5. Martins MA, Favarato MHS, Saad R, Morinaga CV, Ivanovic LF, Jorge MCP, et al. Manual do residente de clínica médica. 2nd ed. Barueri: Manole; 2017.
  6. Raffa RB, Haidery M, Huang HM, Kalladeen K, Lockstein DE, Ono H, et al. The clinical analgesic efficacy of buprenorphine. J Clin Pharm Ther. 2014;39(6):577-83.
  7. Rangel O, Telles C. Tratamento da dor oncológica em cuidados paliativos. Revista do Hospital Universitário Pedro Ernesto. 2012;11(2):32-7.
  8. Serafini G, Adavastro G, Canepa G, De Berardis D, Valchera A, Pompili M, et al. The Efficacy of Buprenorphine in Major Depression, Treatment-Resistant Depression and Suicidal Behavior: A Systematic Review. Int J Mol Sci. 2018;19(8):2410.
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  10. World Health Organization. Health Topics. Palliative care. https://www.who.int/health-topics/palliative-care.
  11. World Health Organization. WHO’s cancer pain ladder for adults. 2020.

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