
Intercorrências domiciliares mais frequentes: Insônia
Telemedicina e atendimento remoto na atenção domiciliar Marcello Dala Bernardina Dalla, Marco Túlio Aguiar Mourão Ribeiro Sumário Pontos-chave Objetivos de…
Ao final do capítulo, o leitor deverá ser capaz de:
Dona Augusta, 88 anos, fazia acompanhamento domiciliar com o médico de família.
Foi realizada videoconsulta às 10 h, do dia 02/11/2021.
Apresentava os seguintes problemas:
Lista de medicamentos:
Segue registro de acordo com o SOAP
#s (subjetivos)
Paciente evoluindo bem sem intercorrências, está estável do ponto de vista do quadro demencial. Estão com medo de realizar consulta presencial, devido à pandemia. No momento estão morando em uma chácara no interior do estado.
Carlos, marido e cuidador, relata que ela apresenta bom raciocínio, independência para atividades da vida diária (AVD) básicas, mas necessita de ajuda para preparar os alimentos e na administração dos medicamentos.
Dançam, conversam, escutam música e têm boa qualidade de vida.
Tomaram as duas doses da vacina contra a Covid-19.
A noite tem chamando o pai e a mãe. Sem agitação.
#0 (objetivos)
Em março de 2021:
A (avaliação)
P (plano de ação)
Álvaro, de 45 anos, liga para a UBS solicitando atendimento domiciliar para sua mãe Domingas, de 72 anos, que está com sintomas respiratórios. Apresenta as seguintes comorbidades:
Lista de problemas:
Lista de soluções:
Lista de medicação:
As origens de recursos semelhantes à telemedicina remontam ao uso de antigos hieróglifos e pergaminhos para compartilhar informações sobre eventos relacionados à saúde, como surtos ou epidemias. Além disso, algumas sociedades eram conhecidas por usar sinais de fumaça para alertar cidades próximas sobre vários problemas, incluindo a circulação de doenças.
Ao entrarmos no século XIX, o advento do telefone e da máquina de escrever transformou a forma como pacientes e médicos compartilhavam informações de saúde. Durante a Guerra Civil dos Estados Unidos da América (EUA), o telégrafo foi usado para transmitir informações sobre vítimas e pedir recursos para atendimento aos feridos. O telefone foi usado durante guerras entre as décadas de 1950 e 1970, para organizar a distribuição de equipes médicas.
Inventado em 1856 pelo Italiano Antonio Meucci para atender uma limitação de um familiar, o telefone ainda hoje é recurso tecnológico importante para atendimentos em saúde. Houve evidente evolução dos aparelhos fixos para os móveis e variados aplicativos estão disponíveis.
Quanto à utilização de recursos de vídeo, também houve uma evidente evolução, apesar de ser singular na abordagem domiciliar para todas as especialidades médicas e profissões relacionadas à saúde, pode ter seu uso extremamente limitado por populações vulneráveis que naturalmente tem limitações de acesso às tecnologias e de trânsito de dados, o que aprofunda a desigualdade e exclusão tecnológica.
Há uma tendência de se utilizar simplesmente os termos de consulta remota ou presencial, certamente por um impulso recente de interações a distância na saúde. Porém, são tecnologias utilizadas na saúde há pelo menos 150 anos que podem receber um verniz de algo inovador para criar evidentes limitações de acesso pelo custo embutido em produtos novos e exploração indevida do trabalho médico e de todos os profissionais de saúde.
Com o impulso recente é possível estabelecer e intensificar sistemas de suporte de atendimento domiciliar que podem se estender além das fronteiras nacionais e fusos horários, rompendo com os limites de tempo e lugar; além dos tradutores eletrônicos em tempo real, que praticamente eliminam a barreira da língua, proporcionando possibilidades de ampliar o acesso aos serviços de saúde.
Neste capítulo daremos ênfase aos recursos de consulta remota voltados para pessoas, famílias e populações atendidas por profissionais e equipes de atenção primária à saúde (APS) e que dependem dos cuidados domiciliares.
O primeiro uso do telefone foi por uma questão de saúde. O inventor italiano Antonio Meucci, devido à dificuldade de deslocamento de sua esposa, decorrente de um problema reumatológico, criou em 1856 um aparelho simples chamado teletrofone, reconhecido como o precursor do telefone. Com o equipamento puderam se comunicar estando em diferentes andares da casa. O invento sempre foi atribuído a Graham Bell, que de fato registrou a patente, mas a primazia do italiano como inventor ocorreu somente em 2002 pelo Congresso dos EUA1.
Ainda hoje o telefone é um recurso tecnológico viável para praticamente todas as populações, é relativamente barato, não necessita de uma capacidade alta de trânsito de dados e é acessível em áreas distantes, mesmo quando em uso coletivo. As chamadas de vídeo, apesar de necessitarem de pacotes de dados mais robustos, são importantes recursos para atendimentos remotos, sobretudo os domiciliares, pois permitem ampliar a percepção para além da condição clínica, observar o ambiente de moradia e relações interpessoais e familiares de forma mais natural. Por outro lado, não deixa de ser uma “invasão” ao ambiente privado e deve seguir regras de convivência dos encontros presenciais.
O contato telefônico resultou em acesso mais rápido para pacientes cujos sintomas eram graves o suficiente para exigir encaminhamento imediato ao pronto-socorro ou internação direta no hospital. Em uma prática de atenção primária, o telefone pode ser uma importante fonte de comunicação para profissionais, funcionários do consultório e pacientes. A criação de uma “clínica telefônica” que conta com enfermeiros e médicos internos treinados e dedicados à comunicação telefônica direta com os pacientes resultou em uma gestão mais eficiente e maior satisfação dos pacientes2.
O uso de videochamadas na área de saúde, que ocorreu na década de 1950 com o desenvolvimento da televisão, em 1959, foi um evento marcante no uso de telemedicina pelo Instituto Psiquiátrico de Nebraska, ao realizar videoconferências para atendimentos em psiquiatria utilizando recursos da TV e incorporando recursos do cinema. A psiquiatria ainda hoje é a especialidade que mais utiliza a telemedicina. Muitos desses recursos foram aperfeiçoados, mas seus conceitos continuam semelhantes aos primórdios da telemedicina3.
Em meados da década de 1990, utilizou-se um sistema de videochamadas em uma linha convencional e convertida em ISDN 64, em que é possível transitar voz e dados com um custo de operação semelhante a uma conta telefônica de aparelho fixo. Em um serviço domiciliar para cuidados respiratórios, estudaram-se dois grupos: houve grande redução no número de visitas domiciliares dos médicos (de 5 para 0), visitas não programadas de pacientes (de 24 para 5) e dias de internação (de 22 para 10), com aumento de cinco vezes nas ligações telefônicas (de 11 para 58) no grupo I. Isso reduziu o número líquido de horas gastas por pacientes e médicos em atendimento não programado em 95 horas para os pacientes e 51,2 horas para os médicos4.
Esse sistema ainda é possível de ser utilizado, evidentemente com algumas evoluções. Estudos na época mostraram que o sistema de videofone utilizado pareceu ser útil no aproveitamento eficaz do tempo dos especialistas e no alívio das ansiedades das famílias. Não foram observados efeitos deletérios e foi considerado uma ferramenta prática e eficaz para recrutar recursos especializados para os cuidados domiciliares e melhorar a qualidade dos cuidados ventilatórios domiciliares pediátricos4.
Mais recentemente, com o estabelecimento da rede mundial de computadores (internet), um dos primeiros recursos das novas tecnologias foi a utilização de e-mails, desde os primeiros momentos e que segue em uso até a presente data, assim como o telefone, é de fácil utilização, tanto por profissionais de saúde como por pacientes e familiares, com baixo consumo de dados, o que é viável para comunidades com dificuldade de acesso tecnológico, além disso, alguns dos que trilharam os primeiros passos da internet como usuários tornaram-se idosos e seguem utilizando suas contas de e-mail como principal forma de comunicação pela internet. Mais recentemente, o uso de redes sociais e aplicativos equivalentes permitem uma comunicação quase instantânea5,6.
Apesar de evidente rejeição pelo uso de equipamentos tecnológicos pelos pacientes de mais idade; em um estudo realizado no início do século XXI, mesmo numa pequena amostra, 61% dos participantes relataram sentir-se à vontade para usar o sistema de computador sem assistência de outra pessoa. A maioria (72%) acreditava que o sistema informatizado registrava corretamente os sinais vitais e 94% relataram que o sistema informatizado não teve um impacto negativo no relacionamento com seu provedor de atenção primária à saúde, sendo que 61% acharam que o sistema teve um efeito positivo. Os participantes desse pequeno estudo piloto ficaram satisfeitos com a experiência que tiveram com a telemedicina7.
A telemedicina foi regulamentada no Brasil, inicialmente, pela Resolução n. 2.227/2018, do Conselho Federal de Medicina (CFM) (hoje revogada)8, e posteriormente pela Resolução n. 2.314/2022, que define e regulamenta a telemedicina no Brasil, como forma de serviços médicos mediados por tecnologias e de comunicação11.
A seguir, traremos alguns dos pontos desta resolução, que ajudarão na realização na teleconsulta domiciliar.
O CFM define os preceitos básicos para o exercício legal da telemedicina, no que tange a atenção domiciliar, sendo permitida a realização em qualquer local do território nacional, mesmo com pacientes que estão em outros municípios ou estados; e que poderá ser em tempo real ou de forma assíncrona. Poderão ser realizadas ações de educação à saúde, prevenção, promoção, assim como medidas assistenciais para os pacientes e familiares.
Pacientes com doenças crônicas, podem realizar consultas remotas, mas sugere-se que também sejam realizadas consultas presenciais em intervalos não superiores a 120 dias.
No artigo 5o recomenda-se que: “Nas teleconsultas são obrigatórios os seguintes registros eletrônicos/digitais: I – identificação das instituições prestadoras e dos profissionais envolvidos; II – termo de consentimento livre e esclarecido; III – identificação e dados do paciente; IV – registro da data e hora do início e do encerramento; V – identificação da especialidade; VI – motivo da teleconsulta; VII – observação clínica e dados propedêuticos; VIII – diagnóstico; IX – decisão clínica e terapêutica; X – dados relevantes de exames diagnósticos complementares; XI – identificação de encaminhamentos clínicos; XII – produção de um relatório que contenha toda informação clínica relevante, validado pelos profissionais intervenientes e armazenado nos Sistemas de Registro Eletrônico/Digital das respectivas instituições; e XIII – encaminhamento ao paciente de cópia do relatório, assinado pelo médico responsável pelo teleatendimento, com garantia de autoria digital”.
Outro ponto extremamente relevante é sobre a triagem, que permite uma avaliação de sintomas para orientar, redirecionar e encaminhar os pacientes quando necessário. No que tange a atenção domiciliar, o médico poderá fazer uma avaliação de sintomas, identificar casos leves e resolver remotamente; ou identificar as pessoas que necessitem de uma avaliação clínica presencial por visita ou mesmo encaminhamento para um serviço de urgência quando necessário.
Outra ação importante regulamentada foi o telemonitoramento, que possibilitou a identificação de dados clínicos pela história e evolução do paciente, a visualização de dados objetivos como parâmetros pressóricos, oximetria, temperatura ou de sistemas de monitoramento domiciliares para que essas pessoas pudessem ser acompanhadas periodicamente, sem a necessidade da visita presencial. Uma vez identificada alguma alteração, poderia ser solicitada a visita presencial para melhor avaliação.
Além destas, foram regulamentadas a prescrição e a solicitação de exames complementares à distância, que deve conter: “I – identificação do médico, incluindo nome, CRM e endereço; II – identificação e dados do paciente; III – registro de data e hora; IV – assinatura digital do médico ou outro meio legal que comprove a veracidade do documento”.
Dessa forma, as ações de teleconsulta ou consultas remotas aos pacientes domiciliados foram regulamentadas e se tornaram um ato médico importante e relevante durante e após a pandemia da Covid-19.
Há uma tendência progressiva de se evitar termos com o sufixo tele e os atendimentos devem ser ofertados nas modalidades usando-se a terminologia básica de presencial e remota, isso pode facilitar o entendimento do que está se oferecendo. O processo de consulta é semelhante ao da consulta presencial tradicional, com a diferença de que o médico e o paciente estão fisicamente separados e se comunicam à distância, estabelecendo uma conversa em tempo real por áudio, vídeo ou ambos os recursos simultaneamente9.
Essa mudança já foi incorporada nos Descritores de Ciências da Saúde (DECS) como Consulta Remota e os termos, como teleconsulta, teleconsulta síncrona, teleconsulta assíncrona, telemonitoramento e outros “tele” como termos alternativos, tendo equivalência no MESH (Medical Subject Headings) da Medline com o termo em inglês Remote Consultation. O termo tele pode causar alguma dúvida e inibir o acesso por parte de pessoas com limitações ao uso de recursos tecnológicos10.
Basicamente o que é importante do ponto de vista legal é a segurança do meio que se está utilizando e, principalmente, registro em prontuário, identificando claramente o horário, qual o meio utilizado para o atendimento e registros habituais de atendimento presencial; não há necessidade de se gravar atendimentos em situações rotineiras de trabalho remoto e, quando necessário, deve ser realizado mediante autorização do paciente ou representante legal11.
Entrar nas casas das pessoas sempre é cercado de um potencial de maleficência, pela inversão de ambiente de atendimento. Bem entendida esta relativa “invasão”, leva para dentro das casas das pessoas os reconhecidos riscos da saúde que ficam exponenciados em situações de vulnerabilidade.
Profissionais de APS possuem uma variedade de instrumentos para identificar pacientes em situação de risco e vulnerabilidade, escalonando as necessidades e como alocar adequadamente os serviços oferecidos, quase sempre com limitações de força de trabalho12.
Do mesmo modo, os recursos de consulta remota tomam tempo, exigem profissionais disponíveis, nem todos que solicitam serão beneficiados e, como todo recurso de saúde, tem um potencial de causar iatrogenias, que ainda não foi bem estudado desde que os primeiros estudos sobre o tema começaram a ser lançados13..
Numa pesquisa na Dinamarca, de todos os 700 clínicos gerais (GP) de plantão, 383 (54,7%) participaram pelo menos uma vez, e os GPs participantes do estudo eram representativos de todos os GPs. No total, foram registrados 21.457 contatos; e a distribuição das características do paciente, contato e GP nos contatos fora de horários de trabalho presencial (em inglês, primary care out-of-hours (OOH) service) foi semelhante aos contatos presenciais. Esse estudo mostrou que as consultas por telefone foram mais frequentemente oferecidas às crianças e as visitas domiciliares principalmente aos pacientes idosos. A taxa de resposta do paciente foi de 51,2%. As mulheres constituíram a maioria dos contatos incluídos e dos entrevistados na pesquisa de pacientes14.
Há uma limitação real de pacientes com baixa condição econômica em acesso, quer seja por equipamentos ou por pacotes de navegação, e isso tende a aprofundar desigualdades. Como as soluções são pensadas do ponto de vista individual, poderiam haver recursos nas unidades de APS para que equipamentos de uso coletivo pudessem ser utilizados em casos de atendimento domiciliar.
Em alguns países, organiza-se de forma a estabelecer uma pré-avaliação dos atendimentos, nem sempre por médicos plantonistas, utilizando-se com frequência de equipes especializadas de enfermagem, isso é feito em situações de urgência e emergência e poderia ser organizado de forma sistemática pelas equipes que realizam atendimentos domiciliares.
Em países com sistemas nacionais de saúde, como na Holanda, o primeiro contato do paciente com serviços de atenção primária, quando fora do horário de expediente, é geralmente realizado por um “enfermeiro de triagem”. Um dos problemas detectados nesse país mostrou que os enfermeiros às vezes subestimam o nível de urgência, que pode ser causado pela tomada incompleta da história utilizando-se o telefone15.
O número médio de dúvidas discriminantes (quando se analisam casos de dor torácica e dispneia) e gerais por contato telefônico foi de 4,4 e 3,2, respectivamente. Conclui-se que perguntas incompletas tomando como base um protocolo-padrão quando se utiliza triagem telefônica não estava associada à subestimação da urgência neste estudo com enfermeiros. O reconhecimento de padrões pode ser mais importante para a identificação de problemas urgentes de saúde por parte dos enfermeiros do que fazer todas as perguntas cruciais durante a tomada da história15.
Em outras palavras, seguir rigorosamente protocolos tanto no presencial como em atendimentos remotos pode ser mais arriscado do que buscar uma abordagem integral da pessoa e dos problemas que apresenta aos profissionais, dessa forma, a percepção adequada de casos que mais necessitam fica mais aguçada e tende a ser mais precisa.
Sem dúvida, a pandemia da Covid-19 reconhecida como tal pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em março de 2020, impulsionou os atendimentos remotos que já vinham em um número crescente antes mesmo do início da segunda década do século XXI. A atenção primária passou por uma reorganização sem precedentes na pandemia, mas conseguiu manter o foco em pacientes com maior complexidade. Um estudo mostrou que ao se analisar 3.851.304 consultas, a idade mediana da população foi de 75 anos. A taxa de consultas telefônicas e eletrônicas/vídeo mais que dobrou ao longo do período estudado (106,0% e 102,8%, respectivamente). As consultas presenciais caíram 64,6% e as visitas domiciliares 62,6%. Isso ocorreu predominantemente na semana 11 (semana com início em 9 de março de 2020). A polifarmácia e a fragilidade estiveram associadas ao aumento relativo das consultas. O maior aumento relativo foi entre as pessoas que tomaram ≥ 10 medicamentos em comparação com aqueles que não tomaram nenhum16.
Os clínicos gerais podem reorganizar rapidamente os cuidados fora do horário de expediente para lidar com os fluxos de pacientes durante um surto de Covid-19. Quarenta por cento dos contatos fora do horário de atendimento primário são feitos apenas por telefone. Recomendamos dar uma consulta por telefone a todos os pacientes e não depender de atendentes para diferenciar entre cuidados infecciosos e regulares. A demanda por consultas físicas diminuiu drasticamente provocando questionamentos sobre a segurança do paciente para atendimentos não relacionados à Covid-19.17
Por outro lado, a economia de recursos não pode se reduzir a remuneração dos profissionais de saúde. O fato de fazer atendimentos ou consultas remotas não deve se configurar numa remuneração reduzida, pois há complexidade e responsabilidades técnicas e legais tanto quanto nos atendimentos presenciais. Além disso, é preciso respeitar os momentos de descanso dos profissionais, trabalho presencial ou remoto é trabalho, e as relações empregatícias devem ser respeitadas bem como as dos médicos com as pessoas que atende.
O deslocamento de um profissional altamente qualificado é caro para o serviço, no mínimo estima-se em 3 vezes o custo maior comparado com um atendimento presencial em consultório. Isso se multiplica quando é necessária a presença de uma equipe para que abordagens multivariadas com intervenções complementares. Portanto, a definição de uma ida ao domicílio tem que se justificar por critérios técnicos, mas também organizacionais pelo dispêndio precioso de tempo e pessoal. Uma alternativa é estabelecer agendas fora de horário para uma pré-avaliação e atendimento imediato, se necessário. Modelos de monitoramento contínuo são questionáveis do ponto de vista da prática clínica centrada na pessoa, pode atender apenas as questões econômicas deixando de lado aspectos basilares da relação com serviços e profissionais de saúde, sobretudo o direito universal à privacidade.
Em uma pesquisa sobre utilização de serviços médicos fora do horário de expediente presencial e distância, o número de consultas médicas e de visitas ao domicílio por habitante diminuiu 48% e 55%, respetivamente, quando a distância média percorrida aumentou de 0 para 50 km. O uso de contato telefônico/carta não se associou significativamente às distâncias18.
Nesse mesmo estudo, os ambulatórios de um único município localizados fora dos hospitais apresentaram a maior taxa de consulta para serviços médicos fora do horário de expediente quando ajustado pela distância. Isso corrobora achados anteriores para o fato de que a distância é um fator crucial para a utilização de serviços médicos fora do horário de expediente. O estabelecimento de ambulatórios intermunicipais e sua localização junto aos hospitais pode contribuir para uma menor taxa de uso de serviços médicos fora do horário de expediente18.
Há variadas condições clínicas e sociais que podem se beneficiar do uso de recursos de atendimento domiciliar remoto, as faixas etárias mais baixas são mais propensas a aceitar atendimento domiciliar remoto, pela preferência dos pais, por facilitar os cuidados às crianças pequenas, geralmente por problemas infecciosos respiratórios, evitando o transtorno da circulação de sintomáticos respiratórios. Idosos e seus familiares optam por atendimentos presenciais, tanto pelo deslocamento como pelos riscos de piorar estados de confusão mental ao sair do ambiente habitual de moradia.
Um serviço privado implementou um programa de gerenciamento de casos de enfermagem telefônica para melhorar a autogestão do diabetes em pacientes com alterações comportamentais (Gold Choice). Buscou-se identificar problemas enfrentados por pacientes com diagnósticos de saúde comportamental, comorbidades e diabetes, conforme documentado nas notas de progresso do gerente de casos de enfermeiras telefônicas por meio de análise qualitativa de 853 notas de progresso de 539 membros do programa Gold Choice19.
Sete grandes temas surgiram refletindo as perspectivas do enfermeiro sobre os desafios enfrentados pelos pacientes e que podem ser úteis para planejar e melhorar atendimentos em pessoas com condições semelhantes de saúde19.
O estudo concluiu que pessoas com diagnósticos de saúde comportamental, comorbidades e diabetes atendidas nesse programa constituem uma população complexa com necessidades extensas, o que não difere de outros contextos. O papel do atendimento domiciliar remoto, neste caso realizado por equipes de enfermagem, necessitou ir além do cuidado com o diabetes e implicou forte apoio social, bem como ajudar na “navegação” ao buscar recursos dos sistemas de saúde, serviço social e agências governamentais de auxílio19.
Como parte significativa da população que demanda visitas domiciliares é composta de idosos, os serviços de saúde serão demandados progressivamente, visto que está em curso um processo intenso de envelhecimento populacional e mudança nos padrões de longevidade e expectativa de vida, com consequente aumento dessa população e aumento das doenças crônico-degenerativas.
Na publicação da OMS, de 2015, “Relatório mundial sobre envelhecimento e saúde”, há uma estimativa de que em 2050 a população de idosos corresponderá a 30% da população mundial. Há um crescimento no atendimento de pessoas com limitação física para deslocamento e crianças submetidas a cuidados paliativos em domicílio20.
Outro estudo abordando idosos em risco de queda e preferencial por atendimento presencial ou remoto, mostrou que entre 2.498 respondentes, 62,7% não demonstraram interesse em nenhum dos formatos. A vontade de participar por formato de programa variou entre 21,5 (em casa) e 9,4% (via internet). Entre as pessoas interessadas em pelo menos um dos formatos (n = 931), níveis mais altos de preocupações relacionadas a quedas foram associados a uma maior preferência por um programa com visitas domiciliares21.
A percepção de saúde ruim e a idade ≥ 80 anos foram associadas a uma menor preferência por um programa em grupo. As pessoas com educação superior eram mais favoráveis a um programa via internet em comparação com as pessoas com baixa escolaridade. A maioria dos idosos que vive na comunidade estudada, provavelmente não participou de nenhum dos seis formatos de programa oferecidos pelo serviço de saúde local para o gerenciamento de preocupações com quedas. No entanto, quando diversos formatos de programas eficazes forem disponibilizados, a adesão inicial ao programa e continuidade pode ser aumentada, uma vez que as preferências do programa estão associadas a características específicas da população, com prováveis peculiaridades individuais, familiares e culturais21.
Mesmo para um idoso que deambule e não tenha comorbidades, há limitações físicas e de deslocamento. Os serviços são na maioria das vezes fragmentados, pode ser necessário ir a vários locais distantes fisicamente para realizar exames, adquirir medicamentos, atender questões legais e outras que podem gerar transtornos para a pessoa e sua família. Isso fica mais dramático em casos de população de idosos acometida por doenças crônico-degenerativas, que tende a evoluir com limitação de locomoção e diminuição ou perda de independência e funcionalidade. Com isso, a atenção domiciliar vem ganhando espaço em todo o mundo como uma estratégia no cuidado longitudinal desses pacientes9.
Embora incipiente, já há estudos mostrando efeitos em unidades de terapia intensiva (UTI) e unidades de cuidado progressivo que atendem em sua maioria pacientes idosos. A mortalidade em unidade de atenção progressiva e tempo de permanência hospitalar e progressiva diminuiu significativamente. O aumento do tempo de permanência hospitalar da unidade de cuidados pós-progresso e os custos médios diretos totais, incluindo os custos de telemedicina, coincidiram com a melhoria das taxas de sobrevivência. A intervenção em telemedicina diminuiu a mortalidade geral e o tempo de permanência nas unidades de cuidados progressivos sem incorrências substanciais de custos22.
Em outras faixas etárias, classicamente o uso do telefone em assistência para resolver problemas de saúde das crianças é um recurso utilizado desde os primeiros anos da expansão do uso da tecnologia. Essa descoberta foi um grande avanço para a aproximação dos pais aos médicos que cuidam de seus filhos, mas gera muita frustração aos profissionais de saúde em virtude do abuso de contatos fora do horário de trabalho presencial.
A ampliação dessa ferramenta ao longo dos anos extrapolou o uso do telefone fixo e dos problemas de saúde, indo além das condições febris em crianças, extrapolando para a assistência domiciliar, que, nessa faixa etária, vem crescendo sobretudo para casos de acamados e aqueles que necessitam de cuidados paliativos, além de pessoas com alterações de comportamento em que a ida a consultas presenciais gera estímulos e cause agitação por estarem em ambiente estranho.
Um fator importante nessas novas modalidades é educar os pais para o uso de tecnologias de assistência remota para cuidados domiciliares; isso pode ser incorporado às orientações ainda durante o pré-natal e ao longo dos primeiros meses de vida, oferecendo recursos disponibilizados pelos serviços de saúde. Estudos mostram que educar os pais, antes de novos episódios de febre infantil e infecções comuns reduz as consultas médicas presenciais diurnas, visitas domiciliares e consultas por telefone, bem como melhora o gerenciamento de medicamentos23.
Por outro lado, as intervenções simples ou multicomponentes, ou seja, que combinam várias intervenções ou abordagens, variam em eficácia na redução da frequência de consultas médicas diurnas e diferem em seu potencial para reduzir o número de visitas domiciliares e contatos fora do horário comercial. Apenas as intervenções multicomponentes conseguiram uma redução nas consultas por telefone e uma melhor gestão da medicação. A educação dos pais antes de episódios de febre infantil e infecções comuns mostrou potencial para melhorar as práticas parentais em termos de comportamento de procura de cuidados de saúde e gestão de medicamentos23.
A saúde planetária é considerada uma nova disciplina com uma tarefa ambiciosa, mas necessária para buscar uma melhor compreensão das relações dinâmicas e sistêmicas envolvendo as mudanças ambientais globais, seus efeitos sobre o meio ambiente e sistemas naturais e como essas mudanças afetam a saúde dos seres humanos. Lembrado que apesar de não completamente elucidado, o SARS-CoV-2, causador da Covid-19, e outros coronavírus são zoonoses que tem como hipótese o contato de humanos com animais silvestres que vivem em habitats remotos24.
A saúde planetária se propõe a compreender esses efeitos em múltiplas escalas: global (p. ex., clima), regional (p. ex., emissões transfronteiriças de fogo) e local (p. ex., poluentes orgânicos persistentes). Ao enfatizar as interconexões entre saúde humana e mudanças ambientais e possibilitar o pensamento sobre desafios e soluções integradas para as gerações presentes e futuras, o conceito de saúde planetária oferece uma oportunidade de avançar nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), identificando inter-relações benéficas das metas, incentivando ações e parcerias intersetoriais e garantindo coerência política com ações práticas24.
Dois possíveis impactos para além da assistência em si podem ser gerados pela atenção remota domiciliar, o impacto sobre a saúde planetária, minimamente pela redução da emissão de carbono e gases de efeito estufa, pois geralmente os deslocamentos de pacientes são feitos em ambulâncias ou transporte sanitário de uso coletivo que em geral são movidos à diesel, mais poluente que a gasolina ou álcool combustível. As equipes de saúde em serviços públicos ou privados quando se deslocam fisicamente o fazem também por veículos emissores de poluentes; evitando-se visitas domiciliares há evidente contribuição sobre a saúde planetária. Um segundo aspecto impactante, refere-se à redução de gastos para deslocamentos evitados, gerando uma economia significativa entre US 7,00 e US 20,00 para cada US 1,00 investido em sistemas de atendimento remoto25.
Após a pandemia da Covid-19, os serviços tiveram que se reorganizar para possibilitar o acesso, a continuidade e a coordenação do cuidado para as pessoas.
Dentre essas pessoas, estavam aquelas que dependiam do cuidado domiciliar antes da pandemia, e que devido às medidas de proteção e isolamento social, em um primeiro momento tiveram as visitas suspensas por muitos gestores. Então, surgiram alguns desafios: Como garantir acesso às pessoas com maior risco e vulnerabilidade? Como garantir a continuidade do cuidado?
Os ACS tiveram um papel fundamental para identificar as pessoas com maior risco e vulnerabilidade, para que junto à equipe pudesse ser realizado um plano de cuidados adequados a esses pacientes e famílias.
Além disso, os ACS fizeram o monitoramento e vigilância deses pacientes por meio de contato remoto (telefone) e aplicativos de mensagens (WhatsApp ou Telegram). No artigo Recomendações para a Atenção Domiciliar em período de Pandemia por Covid-19, publicado na revista brasileira de Medicina de Família e Comunidade26, os autores destacam que os ACS potencializariam por meio dessa comunicação e vínculo remoto:
A partir dessa comunicação, os ACS poderão identificar situações que necessitam de uma intervenção ou visita presencial da equipe.
Os casos da abertura do capítulo trouxerem situações em que a telemedicina ou consultas remotas foram muito bem aplicadas. No primeiro caso, o seguimento de uma paciente com doenças, para acompanhamento periódico, sem queixas agudas, em que foi realizada a consulta remota para avaliar evolução clínica, identificação de dados objetivos, solicitados exames de rotina e renovada a receita. Com sugestão de avaliação presencial posterior. Nota-se que a paciente estava em isolamento e em outro município. Dessa forma, possibilitou-se acesso e continuidade do cuidado de uma pessoa com condição crônica e com risco e vulnerabilidade.
No segundo caso, foi possível a identificação precoce pela teleconsulta de um paciente com sintomas respiratórios, com comorbidades, possibilitando acesso precoce ao paciente, identificação de risco e programação de uma visita presencial.
A telemedicina e a consulta remota no domicílio vieram para ficar, visto que se somam a estratégias de cuidado, ampliando o acesso, otimizando o tempo dos pacientes e dos profissionais de saúde, possibilitando uma gestão do cuidado mais eficaz. O uso de tecnologias relativamente simples, finalmente chegou e vai ficar!
Esperamos que sejam feitas mais pesquisas e haja mais desenvolvimento tecnológico para que possamos evoluir ainda mais no cuidado domiciliar remoto; no entanto, reforçamos que nenhuma tecnologia será substitutiva ao cuidado presencial, e que a visita domiciliar presencial sempre tem sua indicação precisa, necessária e insubstituível.
Telemedicina e atendimento remoto na atenção domiciliar Marcello Dala Bernardina Dalla, Marco Túlio Aguiar Mourão Ribeiro Sumário Pontos-chave Objetivos de…
Telemedicina e atendimento remoto na atenção domiciliar Marcello Dala Bernardina Dalla, Marco Túlio Aguiar Mourão Ribeiro Sumário Pontos-chave Objetivos de…