Emergencias ginecológicas

Medicina de emergência: Emergências ginecológicas

Edson Santos Ferreira Filho, Rodrigo Antonio Brandão Neto, Júlio César Garcia de Alencar

Sumário

 

Pontos importantes

Vulvovaginites:

  • As vulvovaginites são causa comum de procura ao departamento de emergência. Apresentam etiologias variadas – inclusive infecciosas – e causam sintomas como ardor, irritação, prurido, odor e secreção genital anormal.
  • A vaginose bacteriana (VB) é a causa mais comum de secreção vaginal anormal no menacma. Cursa com corrimento branco acinzentado com bolhas finas e odor característico. A candidíase cursa com secreção branco-amarelada, grumosa, abundante e se associa a prurido vaginal intenso. Já a tricomoníase cursa com corrimento amarelo-esverdeado e pode estar associada a sintomas irritativos, subsequentes ao processo inflamatório exuberante, como prurido, ardor e disúria.
  • Doença inflamatória pélvica aguda:
  • A doença inflamatória pélvica aguda (DIPA), por vezes chamada de moléstia inflamatória pélvica aguda (MIPA), é a infecção grave mais comum em mulheres sexualmente ativas com idade entre 16 e 25 anos. A maior causa de morte é ruptura de abscesso tubo-ovariano. A etiologia é polimicrobiana; Neisseria gonorrhoeae e Chlamydia trachomatis são os organismos mais frequentemente associados.
  • O diagnóstico de DIPA inclui: 3 critérios maiores + 1 critério menor; ou 1 critério elaborado. Critérios maiores: dor à palpação anexial, dor à mobilização do colo uterino e dor pélvica/hipogástrica. Critérios menores: febre, secreção genital purulenta, massa pélvica, leucocitose, elevação de PCR ou VHS, documentação da infecção por Chlamydia ou Neisseria. Critérios elaborados: evidência histológica de endometrite, exame de imagem mostrando abscesso tubo-ovariano e documentação laparoscópica (ou laparotômica) de MIPA.
  • Os casos leves a moderados de DIPA podem ser tratados com antibióticos por via oral, com casos graves necessitando de antibioticoterapia parenteral e, em casos específicos, intervenção cirúrgica.
  • Sangramento genital anormal:
  • O sangramento vaginal é uma queixa relativamente comum e na maioria das vezes é associado a um sangramento uterino anormal. Anamnese, exame físico e eventuais exames complementares orientam o diagnóstico e constituem base da abordagem da paciente.
  • As pacientes com sangramento vaginal que estejam hemodinamicamente instáveis necessitam de ressuscitação imediata e correção de coagulopatias subjacentes. Após compensação clínica da fase aguda, podem ser manejadas ambulatorialmente.
  • Violência sexual:
  • A agressão sexual é um crime de violência que, em algumas ocasiões, precisa ser avaliado no departamento de emergência com identificação de lesões, coleta de amostras, indicação de profilaxia de infecções e anticoncepção de emergência, notificação e orientação da paciente sobre a importância de registrar queixa no nível judicial, mas sem vincular nenhuma etapa do atendimento à exigência de boletim de ocorrência.

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Afecções agudas do trato genital inferior

A maioria das descargas vaginais é fisiológica. No entanto, também podem ser causadas por uma ampla variedade de distúrbios, incluindo vaginites, cervicites e doença inflamatória pélvica. As vulvovaginites possuem múltiplas etiologias (bactérias, fungos, protozoários, corpos estranhos, hipoestrogenismo etc.) e causam sintomas variados, incluindo ardor, irritação, prurido, odor e secreção genital anormal. As causas infecciosas mais comuns de corrimento em mulheres na menacme são vaginose bacteriana (40-45%), candidíase vulvovaginal (20-25%) e tricomoníase (15-20%). Em até 30% das mulheres com queixas vaginais, o transtorno pode permanecer sem diagnóstico.

As vulvovaginites infecciosas raramente necessitam de internação hospitalar, mas podem apresentar complicações sérias na gravidez, como ruptura prematura de membranas, trabalho de parto prematuro e baixo peso ao nascimento. Além disso, favorecem a ascensão de outros microrganismos, aumentando o risco de adquirir outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), como o HIV, e a ocorrência de DIPA.

Nessas pacientes, deve-se obter uma anamnese detalhada e recomenda-se realizar exame ginecológico minucioso. A história deve incluir informações sobre o corrimento vaginal (cor, odor, tempo de evolução, consistência) e sintomas associados como irritação, prurido, ardor, sangramento, disúria e dispareunia. Deve-se ainda perguntar sobre relações sexuais e parceiros e observar ao exame a presença de edema ou eritema vulvar, corrimento vaginal, inflamação cervical e sensibilidade à palpação abdominal e à mobilização cervical.

O exame das secreções e a avaliação do pH são ferramentas úteis para o diagnóstico diferencial. Sinais de inflamação vulvar e corrimento mínimo sugerem a possibilidade de causas mecânicas, químicas ou causas não infecciosas de vulvovaginite.

Vaginose bacteriana

A vaginose bacteriana (VB) é a causa mais comum de corrimento vaginal patológico. São considerados fatores de risco:

  • Parceria sexual múltipla.
  • Intercurso vaginal após intercurso anal.
  • Uso de duchas vaginais.
  • Tabagismo.
  • Obesidade.

A VB é uma infecção polimicrobiana que ocorre quando lactobacilos produtores de peróxido de hidrogênio são substituídos por outras espécies, incluindo Gardnerella vaginalis, Mobiluncus sp., Prevotella sp., Ureaplasma urealyticum, Mycoplasma e vários anaeróbios. Mulheres sem atividade sexual comumente não são afetadas.

A apresentação clínica mais comum é o corrimento vaginal acinzentado e com odor de peixe, secundário à produção de substâncias como putrescina e cadaverina. A análise do corrimento vaginal pode ajudar no diagnóstico apresentando na microscopia as chamadas “clue cells”. Classicamente, a presença de pelo menos três dos quatro critérios de Amsel a seguir faz o diagnóstico:

  1. Corrimento vaginal branco-acinzentado com bolhas finas.
  2. Presença de “clue cells” (células-guia ou células em alvo) em amostra de secreção vaginal.
  3. Resultados positivos no teste de liberação de amina (teste de odor com 1 gota de hidróxido de potássio – KOH – a 10%).
  4. pH vaginal > 4,5.

De modo alternativo, pode-se realizar bacterioscopia da secreção vaginal e uso do escore de Nugent: um escore de 7 a 10 é indicativo de vaginose bacteriana, 4 a 6 é indeterminado, 0 a 3 é considerado normal. Não se faz diagnóstico de vaginose bacteriana com base em colpocitologia oncológica; a cultura de secreção vaginal também não tem papel nesse diagnóstico.

Regimes para tratamento são:

  • Metronidazol 500 mg, via oral, duas vezes ao dia por 7 dias.
  • Secnidazol ou tinidazol 2 g, via oral, em dose única.
  • Clindamicina 300 mg, via oral, duas vezes por dia por 7 dias.
  • Clindamicina creme 2% ou gel, via vaginal, por 7 noites consecutivas.
  • Metronidazol gel 0,75%, via vaginal, por 5 noites consecutivas.

Os tratamentos oral e tópico apresentam eficácia similar. Tratar parceiros sexuais masculinos não é necessário; parceiras sexuais femininas devem ser tratadas se apresentarem sintomas. Durante o uso de metronidazol, deve-se aconselhar as pacientes a evitar o consumo de bebidas alcoólicas durante o período de tratamento e nas próximas 24 horas (para evitar efeito dissulfiram ou antabuse) e a se absterem de relações sexuais ou a usar preservativos durante o tratamento.

Candidíase vaginal

As espécies de Candida são a segunda causa mais comum de vaginite infecciosa. Estima-se que 75% das mulheres terão pelo menos um episódio de candidíase vulvovaginal durante a vida. A Candida faz parte da flora vaginal normal; é a sua proliferação excessiva (relacionada a alguma disbiose) que causa redução do pH vaginal e sintomas. Em crianças com candidíase, deve-se investigar diabetes mellitus – sobretudo quando recorrente. A incidência da candidíase diminui após a menopausa, pelo hipoestrogenismo.

Fatores que favorecem o aumento das taxas de colonização vaginal incluem gravidez, uso de anticoncepcionais orais, diabetes mellitus descontrolado, imunossupressão e uso recente de antimicrobianos. O uso de roupas íntimas abafadas também pode contribuir, por causa do aumento da temperatura.

Os sintomas incluem leucorreia, prurido vaginal intenso, disúria inicial e dispareunia. O prurido vaginal é o sintoma mais comum e específico. O corrimento vaginal é branco e abundante. Os sintomas variam em gravidade, mas a exacerbação é frequentemente observada na semana anterior à menstruação ou com o coito. O odor é incomum e, se presente, sugere-se investigar diagnósticos diferenciais (p. ex., tricomoníase ou DIPA).

O exame ginecológico pode revelar eritema e edema vulvar, eritema vaginal e secreção vaginal abundante. Sugere-se tratamento empírico para pacientes sintomáticas, com exame físico sugestivo, mesmo com achados negativos no exame microscópico direto, caso não seja possível obter culturas de Candida.

São regimes de tratamento:

  • Fluconazol 150 mg, um comprimido via oral em dose única.
  • Clotrimazol 2% creme, um aplicador intravaginal ao dormir por 3 dias.
  • Miconazol 2% creme, um aplicador intravaginal ao dormir por 7 dias.

O tratamento da candidíase vulvovaginal recorrente (isto é, quatro ou mais episódios em um ano) requer uma duração mais longa da terapia, com dose semanal de 150 mg de fluconazol durante 6 meses. Nos casos de Candida resistente a fluconazol, utiliza-se o ácido bórico 600 mg, via vaginal, por 14 dias.

Tricomoníase

A tricomoníase é uma infecção parasitária pelo Trichomonas vaginalis. A infecção pode produzir inflamação local quando o organismo se liga à mucosa vaginal. Cerca de 50% das mulheres são assintomáticas. Mulheres sintomáticas com vaginite por Trichomonas apresentam descarga vaginal amarelo-esverdeada espumosa e com mau cheiro, prurido e irritação.

O diagnóstico baseia-se no exame microscópico das secreções vaginais e na visualização de protozoários móveis. A microscopia deve ser realizada imediatamente após a coleta da amostra ou o organismo perderá a mobilidade. A sensibilidade da identificação microscópica de Trichomonas é de 60% a 70%. A cultura em meio Diamond tem 95% de sensibilidade, mas é pouco disponível, e testes de biologia molecular (RT-PCR) podem ser utilizados.

Os regimes de tratamento incluem:

  • Metronidazol 2 g, via oral, em dose única.
  • Tinidazol 2 g, via oral, em dose única.
  • Metronidazol 5 g creme, 1 aplicador intravaginal à noite por 7 dias.
  • Regime alternativo: metronidazol 500 mg, via oral, duas vezes ao dia por 7 dias.

O tratamento com dose única é preferível devido ao menor custo e maior adesão do paciente ao regime. No entanto, pacientes cuja infecção não responde à terapia de dose única podem necessitar de um tratamento de 7 dias. Além disso, em alguns casos, a paciente pode recusar o uso de múltiplos comprimidos em dose única. Deve-se aconselhar as pacientes a se absterem de relação sexual até que a terapia medicamentosa tenha sido concluída. O tratamento de parceiros sexuais é aconselhável após avaliação clínica.

Herpes genital

É transmitida predominantemente pelo contato sexual (inclusive orogenital), com período de incubação de 3 a 14 dias. A transmissão pode ocorrer também pelo contato direto com lesões ou objetos contaminados. Em geral, é causada pelo herpes simples vírus (HSV) tipo 2, embora também haja casos de infecção pelo HSV tipo 1.

A apresentação clínica é variada. Na fase prodrômica, aumento de sensibilidade, formigamento, mialgia, ardência e/ou prurido antecedem o aparecimento das lesões, que se localizam principalmente nos pequenos lábios, clitóris, grandes lábios, fúrcula e colo do útero. As lesões iniciais são pápulas eritematosas de 2 a 3 mm, seguindo-se de vesículas agrupadas com conteúdo citrino, que se rompem originando úlceras rasas, posteriormente recobertas por crostas sero-hemáticas. Adenopatia inguinal dolorosa bilateral pode ocorrer em 50% dos casos. Podem ocorrer sintomas gerais, como febre e mal-estar.

Ao final da infecção, mesmo que assintomática, o HSV ascende pelos nervos periféricos sensoriais e penetra nos núcleos das células ganglionares, permanecendo em estado de latência.

As infecções podem ser recorrentes e 60 a 90% dos pacientes apresentam novos episódios nos primeiros 12 meses, por reativação dos vírus. A recorrência das lesões pode estar associada a episódios de febre, exposição à radiação ultravioleta, traumatismos, menstruação, estresse físico ou emocional, antibioticoterapia prolongada e imunodeficiência. O quadro clínico das recorrências é menos intenso que o da primoinfecção, e é precedido de pródromos característicos, como aumento de sensibilidade no local, prurido, “queimação”, mialgias e “fisgadas” nas pernas, quadris e região anogenital.

O diagnóstico na maioria das vezes pode ser realizado apenas com a inspeção. Os procedimentos complementares que podem ser realizados incluem a realização de RT-PCR. A utilização da coloração de Papanicolaou permite a observação de inclusões virais. A biópsia não precisa ser indicada rotineiramente, mas é diagnóstica por meio da identificação dos corpúsculos de inclusão. O isolamento do vírus em cultura de tecido é a técnica mais específica para detecção da infecção herpética.

Regimes de tratamento

No primeiro episódio podem ser utilizados:

  • Aciclovir 400 mg, via oral, 8/8 horas, por 7 a 10 dias.
  • Aciclovir 200 mg, via oral, 4/4 horas (5 vezes por dia), por 7 a 10 dias.
  • Valaciclovir 1 g, via oral, 12/12 horas, por 7 a 10 dias.
  • Fanciclovir 250 mg, via oral, 8/8 horas, por 7 a 10 dias.

Nas recorrências de herpes genital, o tratamento deve ser iniciado, de preferência, tão logo surjam pródromos:

  • Aciclovir 400 mg, via oral, 8/8 horas, por 5 dias.
  • Valaciclovir 500 mg, via oral, 12/12 horas, por 5 dias.
  • Fanciclovir 125 mg, via oral, 12/12 horas, por 5 dias.

Vulvovaginite de contato

A dermatite de contato resulta da exposição do epitélio vulvar e da mucosa vaginal a um irritante químico primário ou a um alérgeno. Os irritantes e/ou alérgenos comuns incluem duchas perfumadas, sabonetes, banhos de espuma e desodorantes, tampões, absorventes e produtos de higiene íntima, antibióticos vaginais tópicos e roupas apertadas.

Os pacientes relatam edema e prurido local ou sensação de queimação. Os achados ao exame físico variam desde eritema e edema local até escoriação, ulceração e infecção secundária. A remoção do fator precipitante é a melhor estratégia para evitar novas crises. Terapia com corticosteroides tópicos, como o acetato de hidrocortisona (0,5-2,5%) ou triancinolona (0,025%), aplicados duas ou três vezes ao dia, fornecem tratamento sintomático.

Vaginite atrófica

A atrofia vaginal secundária ao hipoestrogenismo, presente em até 60% das mulheres após a menopausa, pode resultar em vaginite atrófica. Os sintomas incluem secura vaginal, dor, prurido, dispareunia e manchas ou secreções ocasionais. A descarga é fina e amarelada ou rosada. O tratamento da vaginite atrófica consiste em uso vulvar e vaginal de creme tópico de estrogênio. Mais recentemente, o laser tem sido incluído no arsenal terapêutico.

Cisto de Bartholin e abscesso

As glândulas de Bartholin estão localizadas nos pequenos lábios. Os ductos das glândulas drenam para o vestíbulo posterior na região lateral da vagina. Os abscessos da glândula de Bartholin tendem a ser polimicrobianos, embora N. gonorrhoeae e C. trachomatis tenham sido implicados. São caracterizados por uma massa no introito vaginal, que se desenvolve ao longo de vários dias. Dor, induração e flutuação geralmente estão presentes. Sintomas sistêmicos como febre e calafrios são raros.

A incisão e a drenagem de um abscesso são geralmente necessárias e costumam ser suficientes para o tratamento. O uso de antimicrobianos após a drenagem está indicado em casos de celulite adjacente ou acometimento sistêmico.

Corpos estranhos vaginais

Deve-se considerar um corpo estranho vaginal em pacientes com descarga vaginal crônica. Objetos removidos incluem tampões e papel higiênico, pacotes de drogas ilegais, restos de preservativos e vários outros itens. Crianças pré-púberes que apresentam corrimentos vaginais, especialmente se forem sanguinolentos ou marrons, devem ser avaliadas para um corpo estranho vaginal, que é encontrado em 4 a 10% dos casos. A descarga associada a um corpo estranho ocorre e costuma ser malcheirosa.

Irrigação vaginal com solução fisiológica pode ser tentada para visualizar e remover um corpo estranho em crianças cooperativas acima de 7 anos de idade. A vaginoscopia sob sedação em sala de cirurgia pode ser necessária em crianças mais novas ou pouco colaborativas.

Trauma vulvar

O trauma vulvar não obstrutivo é incomum; no entanto, está associado a consequências físicas e psicológicas significativas. Os pacientes podem apresentar escoriações, lacerações, hematomas, queimaduras e feridas por mordida. Dependendo da situação, consulta ginecológica e exame sob anestesia podem ser necessários. Devem-se avaliar pacientes com trauma vulvar para lesões vaginais, uretrais, anais e ósseas associadas e tratar adequadamente.

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Doença inflamatória pélvica aguda

A expressão “doença inflamatória pélvica aguda” (DIPA) – também chamada de moléstia inflamatória pélvica aguda (MIPA) – representa um espectro de situações que cursam com infecção do trato reprodutivo superior feminino, isto é, útero, ovários e trompas. Sua forma de aquisição é, em geral, vaginal, por ascensão de microrganismos. A DIPA é a infecção grave mais comum em mulheres sexualmente ativas com idade entre 16 e 25 anos. O espectro da DIPA inclui salpingite, endometrite, miometrite, parametrite, ooforite e abscesso tubo-ovariano e pode se estender para produzir periapendicite, peritonite pélvica e peri-hepatites (síndrome de Fitz-Hugh-Curtis). Sequelas em longo prazo incluem infertilidade, gravidez ectópica e dor crônica, podendo afetar 11% das mulheres em idade reprodutiva.

A causa mais comum de morte é a ruptura de um abscesso tubo-ovariano e a mortalidade associada à ruptura permanece entre 5% e 10%, mesmo com métodos de tratamento atuais.

Etiologia e fatores de risco

Neisseria gonorrhoeae e Chlamydia trachomatis são os organismos mais comumente identificados na DIPA. A maioria das pacientes apresenta infecção polimicrobiana. Alguns quadros infecciosos são associados a quebra da barreira endocervical e maior risco de ocorrer DIPA (Tabela 1).

Tabela 1 Fatores de risco para doença inflamatória pélvica aguda (DIPA)

IST: infecção sexualmente transmissível.

Manifestações clínicas

A apresentação clínica da DIPA é variável, com um número significativo de pacientes assintomáticas ou oligossintomáticas. A queixa de apresentação mais comum é a dor abdominal baixa, mais frequentemente descrita como bilateral e persistente, mas de caráter variável. A dor pode ser exacerbada pela mobilização ou pela atividade sexual. Outros sintomas e sinais incluem:

  • Descarga vaginal anormal (75% das pacientes).
  • Sangramento vaginal e pós-coito (mais de um terço das pacientes).
  • Sintomas miccionais irritativos.
  • Febre.
  • Mal-estar, náuseas e vômitos.
  • Sintomas ocorrem mais comumente no início do ciclo menstrual ou no final da menstruação.
  • Hipersensibilidade em região abdominal inferior e sensibilidade ao toque do colo do útero.
  • Rigidez de parede abdominal involuntária e descompressão brusca positiva podem estar presentes e indicam peritonite associada, mas são relativamente raras.

A hipersensibilidade ao toque em anexos apresentou sensibilidade diagnóstica de 95% em um estudo. A presença de febre, hipersensibilidade anexial e uma elevada velocidade de hemosse­dimentação de eritrócitos são preditores independentes significativos de endometrite e classificam corretamente 65% dos pacientes com DIPA laparoscópica comprovada.

A hipersensibilidade do quadrante superior direito do abdome, particularmente com icterícia, pode indicar inflamação peri-hepática (síndrome de Fitz-Hugh-Curtis). O diagnóstico deve ser suspeitado em mulher com diagnóstico de DIPA com dor do quadrante superior direito geralmente à palpação sem nenhuma outra causa evidente de dor. É uma complicação incomum e responde ao tratamento antibiótico padrão para DIPA e pode estar associado a salpingite gonocócica.

A DIPA está associada a uma série de complicações clínicas graves, como abscesso tubo-ovariano relatado em até um terço das mulheres internadas por DIPA. As complicações da DIPA são apresentadas na Tabela 2.

Tabela 2 Complicações da doença inflamatória pélvica aguda (DIPA)

Exames complementares e diagnóstico

O diagnóstico baseia-se na história e nos achados clínicos com exame ginecológico completo. Nenhuma informação de história, exame físico ou laboratorial é sensível e específica para a doença e deve-se observar a presença de fatores de risco para doença. A presença de massa anexial deve alertar para um possível abscesso tubo-ovariano.

A avaliação em pacientes em idade fértil deve sempre incluir um teste de gravidez. Pode-se iniciar o tratamento empírico em mulheres com fatores de risco para DIPA que apresentam dor abdominal inferior, hipersensibilidade anexial e sensibilidade ao movimento cervical.

Exames úteis incluem microscopia da secreção vaginal, pesquisa para C. trachomatis e N. gonorrhoeae (PCR) e sorologias para HIV e sífilis. O corrimento é um achado sensível, mas não específico, para a infecção do trato genital superior, e a ausência é um preditor negativo para DIPA.

Se a DIPA é suspeita clinicamente, uma contagem elevada de leucócitos, aumento de velocidade de hemossedimentação (VHS) e proteína C-reativa (PCR) aumentam a suspeita diagnóstica.

O exame de urina 1 pode excluir a infecção do trato urinário, mas um exame de urina positivo não exclui DIPA, pois qualquer processo inflamatório na pelve contígua pode levar a leucocitúria.

Os exames de ultrassonografia pélvica transvaginal são indicados se a paciente não apresentar melhora clínica ou laboratorial após 48 a 72 horas de tratamento antibiótico ou antes, se houver suspeita de abscesso tubo-ovariano ou outros critérios de gravidade. Os achados ultrassonográficos incluem:

  • Espessamento das tubas uterinas (> 5 mm) com estas cheias de fluido ou líquido livre em pelve.
  • Massas anexiais complexas (abscessos pélvicos ou tubo-ovarianos).

O exame também pode ser útil para confirmar o diagnóstico ou afastar outras causas no diagnóstico diferencial da dor pélvica, incluindo gravidez ectópica, torção ovariana, cisto de ovário hemorrágico e, possivelmente, apendicite ou endometriose.

Quando apendicite ou outros diagnósticos cirúrgicos não podem ser excluídos, deve-se obter uma tomografia computadorizada (TC) de abdome. Os achados da TC na DIPA incluem o obscurecimento dos planos fasciais pélvicos, cervicite, ooforite, salpingite, espessamento dos ligamentos uterossacros e a presença de coleções de líquido pélvico ou abscesso. A imagem de ressonância magnética (RM) é mais específica e precisa do que a ultrassonografia para avaliar a DIPA, com sensibilidade de 95% e uma especificidade de 89%. No entanto, na maioria dos casos, a ultrassonografia é suficientemente elucidativa, sem necessidade de ressonância magnética. A abordagem cirúrgica pode ser indicada em pacientes com falha terapêutica, especialmente em casos em que a drenagem guiada por radiologia intervencionista não for possível.

Para o diagnóstico de DIPA são necessários 3 critérios maiores e 1 menor; ou 1 critério elaborado.

  • Maiores: dor à palpação anexial, dor à mobilização do colo uterino, dor pélvica/hipogástrica.
  • Menores: febre, secreção genital purulenta, massa pélvica, leucocitose, elevação de PCR ou VHS, documentação da infecção por Chlamydia ou Neisseria.
  • Elaborados: evidência histológica de endometrite, exame de imagem mostrando abscesso tubo-ovariano, documentação laparoscópica (ou laparotômica) de MIPA.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da DIPA é amplo e inclui cervicite, gravidez ectópica, endometriose, cisto ovariano, torção ovariana, aborto espontâneo, aborto séptico, colecistite, gastroenterite, apendicite, diverticulite, pielonefrite e cólica renal. Deve-se procurar sinais de infecções sexualmente transmissíveis (IST), como herpes simples, sífilis e infecção pelo papilomavírus humano na avaliação da paciente.

Tratamento

É recomendado um limiar baixo para iniciar o tratamento para DIPA. O diagnóstico precoce e o tratamento são críticos porque a duração dos sintomas é um fator de risco independente para a infertilidade.

Deve-se realizar analgesia adequada, controle de febre e reposição volêmica em pessoas com náuseas, vômitos, com desidratação e toxemia. Os anti-inflamatórios não esteroidais são extremamente eficazes para o tratamento da dor de origem pélvica.

O tratamento no DE deve incluir terapia antibiótica empírica de amplo espectro para cobrir toda a gama de organismos prováveis. O tratamento antibiótico pode ser ambulatorial ou em regime de internação. São indicações para internação:

  • Ausência de resposta a medicação oral.
  • Impossibilidade de tomar medicações orais.
  • Pacientes gravemente doentes (febre alta, náuseas e vômitos, hipotensão, dor abdominal de difícil controle).
  • Suspeita de condições com indicação de intervenção cirúrgica (p. ex., abscesso tubo-ovariano ou impossibilidade de diagnóstico diferencial com apendicite).

A doxiciclina por via oral é uma opção para tratamento ambulatorial associada com ceftriaxona 2 g IV por 14 dias. A azitromicina é uma alternativa à doxiciclina em dose de 1.000 mg por via oral uma vez por semana por 2 semanas.

Um estudo com mais de 600 mulheres não demonstrou diferenças entre regimes orais e parenterais em mulheres com DIPA aguda leve, sem complicações. As pacientes com DIPA com tratamento inicial com antibióticos IV podem ter sua terapia modificada para antibióticos por via oral após a melhora clínica com o tratamento inicial endovenoso. A Tabela 3 apresenta os principais regimes antibióticos para pacientes com DIPA em que se considera internação.

Tabela 3 Regimes de tratamento para pacientes com doença inflamatória pélvica aguda (DIPA) internados

Fonte: Ministério da Saúde. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis, 2015.

As diretrizes atuais do CDC sugerem que não há evidências para recomendar a remoção de DIU antes do tratamento da DIPA, porque o dispositivo geralmente não é a fonte de infecção. As mulheres HIV-positivas com DIPA são mais propensas a ter um abscesso tubo-ovariano na ultrassonografia.

Em pacientes sépticas com DIPA e achados pélvicos assimétricos ou suspeita de abscesso tubo-ovariano, deve-se obter uma imagem com ultrassonografia pélvica.

A maioria dos abscessos tubo-ovarianos (60% a 80%) se resolve com a administração de antibióticos isoladamente. No caso de abscesso tubo-ovariano, a terapia oral deve continuar com clindamicina (600 mg VO quatro vezes por dia) ou metronidazol com doxiciclina para melhor cobertura anaeróbia por 14 dias.

Os pacientes que não melhoram após 72 horas de tratamento devem ser reavaliados para outras abordagens como drenagem percutânea guiada por TC ou US, drenagem laparoscópica, colpotomia posterior com drenagem (culdoscopia) ou outra intervenção cirúrgica conforme avaliação de médico ginecologista. Os abscessos de 9 cm ou maiores apresentam maior probabilidade de necessitar de cirurgia.

Recomenda-se reavaliação em 72 horas para verificar se ocorreu melhora clínica e adesão ao regime prescrito. Deve-se encorajar a avaliação e o tratamento dos parceiros e testar e tratar outras IST, além de aconselhar a paciente a permanecer abstinente da atividade sexual até 1 semana após o término do tratamento. O tratamento do parceiro é crucial para prevenir episódios repetidos de DIPA.

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Sangramento vaginal no departamento de emergência

O sangramento vaginal é uma queixa relativamente comum e na maioria das vezes é associado a um sangramento uterino anormal. A prevalência de sangramento uterino anormal é estimada em 9 a 14% na população geral. Os diagnósticos diferenciais incluem gestação, anormalidades estruturais (p. ex., pólipos, miomas), endometrite, coagulopatias e trauma, dentre outras causas.

Avaliação inicial

Anamnese:

  • Detalhes do episódio atual de sangramento, como intensidade e relação com ciclo menstrual.
  • Características do ciclo menstrual normal.
  • Sintomatologia associada, incluindo dor pélvica.
  • Data da última menstruação e método contraceptivo em uso.
  • Comorbidades e medicações em uso.
  • História reprodutiva, sexual e obstétrica.

Exame físico:

  • Estado geral, sinais vitais e de má perfusão periférica.
  • Procurar sinais de sangramento (petéquias, púrpura, hematomas…) em outros locais e outras doenças como coagulopatias e hipertireoidismo ou hipotireoidismo.
  • Propedêutica abdominal: inspeção estática e dinâmica, ausculta, palpação e percussão.
  • Inspecionar períneo, vulva, uretra e região anal (procurar outros possíveis sítios de sangramento).
  • Exame físico dirigido com toque bimanual e exame especular, se possível.
  • Avaliar tamanho uterino e perviedade de orifício cervical.

Até 20% das mulheres com sangramento vaginal intenso desde a menarca têm um distúrbio de coagulação subjacente, sendo a doença de von Willebrand a mais comum. Uma história de sangramento menstrual intenso desde a menarca, hemorragia pós-parto, sangramento relacionado a cirurgia ou tratamento dentário e histórico familiar sugerem o diagnóstico de distúrbios hemorrágicos e necessidade de avaliação hematológica. Ainda é importante perguntar sobre o uso de anticoncepcionais hormonais, porque doses omitidas são uma causa frequente de sangramento.

Etiologia

As causas de sangramento vaginal ou uterino anormal em mulheres não gestantes são classificadas em causas estruturais como hiperplasia endometrial ou pólipos e causas não estruturais como coagulopatias. A Tabela 4 apresenta as principais etiologias de sangramento vaginal.

Tabela 4 Etiologias de sangramento vaginal

O termo “sangramento uterino anormal” engloba todas as causas de sangramento anormal em mulheres não gestantes, e as causas mais prováveis são determinadas pela idade da paciente. Na adolescência, causas estruturais são incomuns; predominam distúrbios anovulatórios e hemorrágicos. As complicações relacionadas à gestação são a causa mais comum de sangramento vaginal anormal durante a menacma.

A hemorragia anovulatória perimenopausa é mais comum, sobretudo a partir dos 45 anos de idade. Já o sangramento pós-menopausa tem por causa mais comum a atrofia endometrial e vulvovaginal, porém sempre deve ser investigado para afastar câncer de endométrio. Outras causas de sangramento pós-menopausa incluem pólipos endometriais e hiperplasia endometrial.

Exames complementares

Deve-se obter um teste de gravidez em mulheres em idade fértil para descartar gestação como causa de sangramento. Um hemograma pode identificar a presença de anemia e plaquetopenia. Estudos de coagulação devem ser solicitados se houver suspeita de coagulopatia por dados de história e exame físico. Em pacientes com suspeita de distúrbios endocrinológicos, a determinação dos níveis de TSH e prolactina pode ser útil, mas raramente é necessária no DE.

A ultrassonografia (USG) é a modalidade de imagem de primeira linha, sendo particularmente útil em caso de dor pélvica associada. A USG pode determinar o tamanho do útero e características endometriais e pode identificar a presença de leiomioma, cistos ovarianos, hidrossalpinge, aderências pélvicas, abscessos tubo-ovarianos, endometriose e tumores. Dependendo dos achados no exame físico, a USG pode ser feita em caráter de emergência ou adiada para avaliação ambulatorial. A TC é usada no DE para a avaliação apenas em caso de dor aguda abdominal ou pélvica, para exclusão de causas não ginecológicas. A ressonância magnética é usada principalmente para melhor estudo do útero com múltiplos miomas, identificação de focos de endometriose em pacientes com adenomiose e estadiamento de câncer.

Tratamento

Os pacientes que estão hemodinamicamente instáveis precisam de ressuscitação imediata e avaliação ginecológica de urgência. Não se recomenda realizar tamponamento vaginal de rotina, porque aumenta o risco de infecção e pode ocultar a perda contínua de sangue. São medidas iniciais:

  • Reposição volêmica com cristaloides, se depleção intravascular.
  • Transfusão de sangue se anemia grave.
  • Correção de coagulopatias subjacentes.

Em pacientes com hemorragia grave, o uso de ácido tranexâmico (antifibrinolítico) associado a anti-inflamatório não esteroidal (principalmente se dor associada) é o tratamento de escolha, com observação no pronto-socorro; o tratamento de manutenção pode ser feito com métodos hormonais. Em mulheres com histórico de doença cardiovascular, cerebrovascular ou tromboembolismo venoso, a terapia com altas doses de estrogênio é contraindicada.

O ácido tranexâmico é utilizado na dose de 500 mg VO ou IV a cada 6-8 horas. Já os anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs) mais utilizados são cetoprofeno 100 mg, via oral ou intravenosa, a cada 12 horas; e naproxeno 500 mg, via oral, a cada 12 horas. Não se recomenda o uso de AINEs por período maior do que 5 a 7 dias pelo risco de lesão renal ou gástrica.

Os pacientes estáveis podem receber alta hospitalar com orientação para seguimento ambulatorial. A necessidade de tratamento cirúrgico baseia-se na estabilidade clínica. Se o tratamento médico falhar ou se houver uma contraindicação (p. ex., doença tromboembólica), o tratamento cirúrgico pode ser considerado. As opções cirúrgicas são dirigidas por suspeita de etiologia e incluem dilatação e curetagem, histeroscopia, tamponamento com balão endometrial e embolização da artéria uterina. A histerectomia é usada como último recurso em pacientes com sangramento agudo e potencialmente fatal, sem resposta a outras medidas de tratamento.

Pacientes com fatores de risco para câncer de endométrio ou acima de 45 anos de idade devem ser encaminhadas para avaliação quanto a possível amostragem histológica endometrial. Fatores de risco para câncer de endométrio incluem obesidade, nuliparidade, história de anovulação, uso de tamoxifeno, infertilidade e história familiar de câncer endometrial ou de cólon.

Lesões vaginais após a relação sexual não são incomuns. O diagnóstico errôneo de lesões no coito ocorre com frequência porque o médico não consegue obter uma história adequada ou a paciente não admite atividade sexual anterior. A maioria das lesões no coito é pequena, mas lesões graves – sobretudo lacerações de fundo de saco vaginal – podem levar a choque hemorrágico.

O sangramento uterino anormal está presente na maioria das mulheres com doença de von Willebrand ou deficiência de fator XI. Opções terapêuticas são semelhantes às daquelas sem distúrbio de sangramento e incluem antifibrinolíticos, anticoncepcionais orais e dispositivo intrauterino com levonorgestrel. Os agentes hormonais aumentam os níveis de fator VIII e de von Willebrand e são uma forma eficaz e popular de terapia. Os antifibrinolíticos, como o ácido tranexâmico e o ácido épsilon-aminocaproico, reduzem tanto a atividade do ativador do plasminogênio quanto a atividade da plasmina. O acetato de desmopressina (DDAVP) estimula a liberação endógena de fator VIII e fator de von Willebrand e pode ser usado profilaticamente para pequenos procedimentos ou tratamento de episódios hemorrágicos e sangramento menstrual intenso. O acetato de desmopressina pode ser administrado por via intranasal, parenteral ou subcutânea. Os AINE são ineficazes na diminuição do sangramento nesses casos e podem aumentar a perda de sangue.

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Violência sexual

A agressão sexual é um crime de violência, destinado a dominar e humilhar a vítima por meio do uso de intimidação e medo. O trauma psicológico é uma consequência universal do estupro e da agressão sexual, e a ausência de danos físicos não indica que um estupro não tenha ocorrido. Cerca de metade dos sobreviventes de agressões têm traumatismo genital ou retal ao exame, e cerca de dois terços têm alguma evidência de hematomas em outros locais. A agressão sexual continua a ser um grande problema de saúde pública em todo o mundo, com mais de 90% das vítimas sendo mulheres. Muitos sobreviventes de violência sexual não denunciam a agressão ou procuram assistência médica, o que contribui para a subnotificação desses casos.

O cuidado com a vítima de agressão sexual é complexo e pode demandar muito tempo. Deve-se obter a história médica e forense; realizar e documentar os resultados do exame médico; coleta de exames, conforme necessidade; proteger contra infecções sexualmente transmissíveis e gravidez indesejada; tratar lesões e outros problemas agudos; notificar; e encaminhar para acompanhamento médico e psicológico. Recomenda-se que as equipes de pronto-socorro tenham equipes médica e de enfermagem treinadas para as particularidades do atendimento dessas pacientes.

Algumas culturas consideram o estupro uma punição ou uma consequência de comportamento sexual aberrante. As sociedades caracterizadas por disparidades de poder baseadas no gênero têm menor probabilidade de definir coerção sexual e ameaças de violência como estupro. As mulheres de tais culturas frequentemente apresentam-se ao DE com outras queixas principais ou relatam histórias inconsistentes, por receio de não serem compreendidas ou pelo medo de retaliações; daí a importância de treinamento adequado das equipes, para reconhecer essas situações e acolher adequadamente as vítimas.

No Brasil, as vítimas de abuso sexual devem realizar boletim de ocorrência e ser avaliadas pelo Instituto Médico Legal (IML) para exame de corpo de delito. É importante lembrar que a assistência médica é independente da atuação policial e pericial, isto é, não se deve obrigar a paciente a prestar queixa para conseguir cuidados assistenciais.

A entrevista médica deve ser iniciada com as apresentações adequadas, tentando demonstrar empatia, lamentando a agressão e assegurando a paciente de que as necessidades médicas e psicológicas sejam oferecidas. O médico deve evitar atitude de choque ou indignação, o que pode aumentar a preocupação e a sensação de marginalização da paciente. As perguntas percebidas como críticas ou julgamento resultam em sentimento de culpa e vergonha e interferem na capacidade da vítima em fornecer uma história completa.

Uma história médica completa e uma descrição geral do episódio são necessárias, além de inquirir a paciente sobre ferimentos. O atendimento médico de vítimas de agressão sexual após 72 horas ou mais do evento torna improvável encontrar provas da agressão. A recusa de atendimento a pacientes nessa situação é considerada uma falha ética e omissão de socorro. O prontuário médico pode ser utilizado posteriormente para obtenção de provas; assim, é importante a documentação completa das lesões encontradas.

O exame físico deve avaliar cuidadosamente áreas potenciais de lesões, como a cavidade oral, sinais de estrangulamento no pescoço, seios, coxas e nádegas. Durante todo o exame, deve-se manter o corpo da paciente coberto o máximo possível, expondo cautelosamente apenas a área que esteja sendo examinada.

Secreções vaginais podem ser coletadas com swab para pesquisa de material genético do agressor. O corante de toluidina aplicado na vulva pode ser usado para avaliar microtraumas. A colposcopia pode detectar lesões não visíveis a olho nu. Em um estudo, apenas 34% das lesões genitais foram vistas a olho nu, 49% foram vistas com colposcopia e 52% foram vistas com corante azul de toluidina.

Se houver suspeita do uso de drogas e entorpecentes para facilitar a agressão, exames toxicológicos devem ser realizados. Exames para sífilis, hepatite B e C e o vírus da imunodeficiência humana (HIV) devem ser realizados. A sorologia para HIV deve ser repetida em 6 semanas, 3 meses e 6 meses. As medidas profiláticas necessárias serão discutidas a seguir.

Anticoncepção de emergência

Deve-se administrar contracepção de emergência o mais rapidamente possível, idealmente até 72 horas e, no máximo, até 5 dias da exposição. Os regimes recomendados são:

  • Levonorgestrel 0,75 mg 12/12 horas por 1 dia; ou 2 comprimidos de 0,75 mg em dose única.
  • Método de Yuzpe: etinilestradiol 0,2 mg e levonorgestrel 1 mg em duas doses com intervalo de 12 horas. No mercado, existem anticoncepcional hormonal combinado oral (AHCO) com 0,05 mg de etinilestradiol e 0,25 mg de levonorgestrel por comprimido. Nesse caso, utilizam-se 2 comprimidos a cada 12 horas.
  • Inserção de dispositivo intrauterino (DIU) de cobre. Nessa situação, é imprescindível estar razoavelmente certo de que não há gestação prévia ao episódio de violência.

Profilaxia de infecções sexualmente transmissíveis

O abuso sexual é uma situação de alto risco de transmissão de IST. Os regimes recomendados pelo Ministério da Saúde nessas situações estão resumidos nas Tabelas 5 e 6.

Tabela 5 Profilaxia das infecções sexualmente transmissíveis (IST) não virais em adultos e adolescentes com mais de 45 kg

Tabela 6 Profilaxia das infecções sexualmente transmissíveis (IST) não virais em gestantes, crianças e adolescentes (< 45 kg)

O uso da ofloxacina é contraindicado em crianças, em adolescentes e pessoas com peso menor que 45 kg. Em grávidas são contraindicados o tianfenicol e as quinolonas. Em indivíduos com história comprovada de hipersensibilidade aos medicamentos de primeira escolha, especialmente penicilina, as drogas de primeira escolha poderão ser substituídas por alternativas, conforme a Tabela 7.

Profilaxia da hepatite B

É indicada em todas as pacientes em situação de violência sexual com exposição a sangue, sêmen ou outros fluidos corporais. A vacina para hepatite B deve ser aplicada no músculo deltoide ou na região do vasto lateral da coxa. O Programa Nacional de Imunizações e o Programa Nacional de Hepatites Virais recomendam o uso de imunoglobulina hiperimune anti-hepatite B (IGHAB) em todas as mulheres em situação de violência sexual não imunizadas ou com esquema vacinal incompleto.

É recomendada dose única de IGHAHB, 0,06 mL/kg, IM, dose única, em extremidade diferente da vacina; e se a dose da vacina ultrapassar 5 mL deve-se dividir a aplicação em duas áreas corporais diferentes. A IGHAHB pode ser administrada até, no máximo, 14 dias após a violência sexual, embora se recomende o uso nas primeiras 48 horas. Não deverão receber a imunoprofilaxia para hepatite B casos de violência sexual em que o indivíduo apresente exposição crônica e repetida com mesmo agressor, situação frequente em casos de violência sexual intrafamiliar. Não deverão receber a imunoprofilaxia para hepatite B os indivíduos cujo agressor seja sabidamente vacinado ou quando ocorrer uso de preservativo, masculino ou feminino, durante o crime sexual. Deve ser considerada vacinação contra hepatite B para os não vacinados previamente.

Profilaxia para HIV

A carga viral no agressor é o fator mais significativo que determina a infectividade. Hoje, sabemos que pessoas que vivem com HIV e permanecem com carga viral indetectável não transmitem o vírus; esse conceito é conhecido como I = I (ou seja, indetectável = intransmissível). O risco de transmissão do HIV aumenta quando ocorre sangramento com penetração vaginal e anal, se a carga viral no ejaculado for alta e se lesões genitais estiverem presentes no agressor ou na vítima.

Nas situações em que o estado sorológico do agressor não é conhecido, a profilaxia do HIV deve ser indicada quando ocorrer penetração vaginal e/ou anal, associada ou não ao coito oral. Em situações de violência sexual com sexo oral exclusivo, não existem evidências para a indicação profilática dos antirretrovirais, mesmo com ejaculação dentro da cavidade oral. Nesses casos, riscos e benefícios devem ser ponderados, e a decisão, individualizada. Não devem receber a profilaxia para o HIV casos de violência sexual em que a mulher apresente exposição crônica e repetida ao mesmo agressor. Não deverá ser realizada a profilaxia para o HIV quando ocorrer uso de preservativo, masculino ou feminino, durante todo o ato sexual.

A realização do teste para HIV no agressor deve ser feita sempre que possível. O teste rápido pode ser indicado para a tomada de decisão terapêutica, quando a condição sorológica do agressor é desconhecida, desde que realizado a menos de 72 horas.

O esquema profilático recomendado inclui tenofovir (TDF), lamivudina (3TC) e dolutegravir (DTG), na posologia indicada na Tabela 8.

Em gestantes, recomenda-se o uso do raltegravir em vez de dolutegravir, conforme descrito na Tabela 9.

Deve-se lembrar que a profilaxia do HIV, com o uso de antirretrovirais, deve ser iniciada no menor prazo possível, com limite de 72 horas da violência sexual. Os medicamentos devem ser mantidos, sem interrupção, por 4 semanas consecutivas (28 dias).

Tabela 7 Alternativas para a profilaxia das infecções sexualmente transmissíveis (IST) não virais

Tabela 8 Esquema profilático para HIV

Fonte: Ministério da Saúde. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Profilaxia Pós-exposição (PEP) de Risco à Infecção pelo HIV, IST e Hepatites Virais, 2018. TDF: tenofovir; 3TC: lamivudina; DTG: dolutegravir.

* Não indicado para pessoa exposta com insuficiência renal aguda.

Tabela 9 Esquema profilático para HIV em gestantes

Fonte: Ministério da Saúde. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Profilaxia Pós-exposição (PEP) de Risco à Infecção pelo HIV, IST e Hepatites Virais, 2018.

Figura 1 Abordagem da paciente com risco de exposição ao HIV. PEP: profilaxia pós-exposição.

Fonte: DIAHV/SVS/MS.

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Considerações finais

Antes da alta, deve-se verificar que a paciente tenha um local seguro para ir. Ofereça a oportunidade de que tome banho e cuide da higiene bucal. Devem ser garantidas consultas de acompanhamento em pacientes com profilaxia de HIV entre 3 e 7 dias após a avaliação inicial. Populações especiais, como crianças, devem ser encaminhadas a um pediatra ou a uma clínica de abuso pediátrico. Acompanhamento psicológico é imprescindível para todos os pacientes.

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Literatura recomendada

  1. Barclay-Buchanan CJ, Barton MA. Vulvovaginitis. In: Tintinalli’s emergency medicine: a comprehensive study guide. 8.ed. McGraw-Hill; 2016.
  2. Brunham RC, Gottlieb SL, Paavonen J. Pelvic inflammatory disease. N Engl J Med. 2015;372:2039.
  3. Hang BS. Abnormal uterine bleeding. In: Tintinalli’s emergency medicine: a comprehensive study guide. 8.ed. McGraw-Hill; 2016.
  4. Ministério da Saúde. Anticoncepção de emergência. 2011.
  5. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Prevenção das DST na violência sexual. Manual de controle de doenças sexualmente transmissiveis. 2006.
  6. Ministério da Saúde. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para profilaxia pós-exposição (PEP) de risco à infecção pelo HIV, IST e hepatites virais. 2018.
  7. Ross J, Judlin P, Jensen J, International Union Against Sexually Transmitted Infections. 2012 European guideline for the management of pelvic inflammatory disease. Int J STD AIDS. 2014;25:1.
  8. Ross JDC, McCarthy J. UK National Guideline for the Management of PID. 2011. Disponível em: http://www.bashh.org/guidelines.
  9. Shepperd SM, et al. Pelvic inflamatory disease. In: Tintinalli’s emergency medicine: a comprehensive study guide. 8.ed. McGraw-Hill; 2016.
  10. Walton LM. Female and male sexual assalt. In: Tintinalli’s emergency medicine: a comprehensive study guide. 8.ed. McGraw-Hill; 2016.
  11. Workowski KA, Bolan GA. Centers for Disease Control and Prevention. Sexually transmitted diseases treatment guidelines, 2015. MMWR Recomm Rep. 2015;64:1.

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