
O papel transformador do professor da saúde no SUS: entre hooks e Freire
“Ensinar é um ato de amor”, escreveu Paulo Freire. Bell Hooks ampliou esse pensamento ao dizer que ensinar também é…
Anna Carolina Afonso Cardoso Andrade, Bruna Ballarotti, Diângeli Soares Camargo
Pontos-chave
Ao final do capítulo, o leitor deverá ser capaz de:
Entende-se por insônia a dificuldade de iniciar ou manter o sono, bem como a presença de sono não reparador.1 O sono é responsável por uma série de processos fisiológicos restauradores e pela manutenção de uma boa funcionalidade durante o período de vigília. É também uma importante dimensão do bem-estar e da saúde, influenciando de forma significativa a qualidade de vida do indivíduo.2
As perturbações do sono são frequentemente comórbidas a diversos transtornos físicos e mentais, muitos dos quais prevalentes na população restrita, dependente de cuidados domiciliares. Pessoas portadoras de síndromes demenciais, transtornos do humor, dor crônica etc. costumam apresentar queixa de insônia.3
A compreensão básica da fisiologia do sono pode auxiliar o profissional clínico a entender suas perturbações. O sono é um estado fisiológico e cíclico que se constitui de duas fases principais: o sono REM (rapid eye movement sleep) e o sono NREM (non rapid eye movement sleep). Essas duas fases se intercalam diversas vezes durante a noite, constituindo o chamado ciclo de sono REM-NREM. Em adultos jovens e saudáveis, cerca de um quinto do tempo de sono é constituído pelo sono REM, fase marcada por intensa atividade cerebral, hipotonia ou atonia muscular e pelos sonhos. O sono NREM se subdivide em três fases (I, II e III), com aumento progressivo de profundidade. Essa fase do sono é marcada pelo relaxamento muscular com manutenção do tônus, menor atividade cerebral e secreção hormonal.4
Normalmente o sono se inicia na fase I do sono NREM, após um breve período de latência. Em poucos minutos o indivíduo progride para a fase II, onde permanece por cerca de 30 a 60 minutos. Após esse período instala-se o sono de ondas lentas, expresso nas fases III do sono NREM. Essa é a fase mais profunda do sono e engloba hoje o que no passado eram as fases III e IV do sono NREM. Após cerca de 90 minutos, o indivíduo atinge a fase de sono REM, completando um primeiro ciclo de sono REM-NREM. Esses ciclos se repetem cerca de cinco vezes durante o período de sono. A fase III do sono NREM predomina na primeira metade da noite, mas quase não ocorre na segunda metade e próximo ao amanhecer.5
Os idosos são uma população relevante para a atenção domiciliar, uma vez que características epidemiológicas, fisiológicas, sociais e funcionais típicas da idade os leva frequentemente a receber cuidados em domicílio, de forma permanente ou transitória. O sono nessa faixa etária possui particularidades que merecem ser conhecidas pelos profissionais de saúde.
O envelhecimento está associado a mudanças na arquitetura do sono, mas essas mudanças não são consideradas patológicas, tampouco se deve partir do pressuposto de que é “normal” que o sono seja ruim nessa faixa etária.6 Diversos estudos demonstram que idosos saudáveis raramente apresentam distúrbios do sono e que idosos que dormem entre 6 e 9 horas têm melhor cognição, saúde física e qualidade de vida em comparação a outros adultos, de qualquer idade, que dormem menos horas ou a mais.6,7
As mudanças arquiteturais do sono, contudo, podem contribuir para a percepção de sono insatisfatório e dificultar essa faixa etária de atingir a quantidade necessária de sono. As principais alterações fisiológicas do sono associadas ao processo de envelhecimento estão descritas no Quadro 1.6
Quadro 1 Alterações fisiológicas do sono associadas ao envelhecimento
Fonte: elaborado pelos autores.
Nessa fase da vida, observa-se também um fenômeno chamado de “avanço de fase de sono”, causado pelo enfraquecimento do ciclo circadiano sono-vigília. Esse fenômeno é caracterizado por maior sonolência no final da tarde e nas primeiras horas da noite, bem como despertares mais precoces. Assim, muitos idosos tendem a adormecer entre as 19 e 21 horas e a despertar cerca de 8 horas depois, entre 3 e 5 da manhã. Nesses casos, os pacientes conseguem obter uma quantidade e eficiência de sono adequadas, mas as expectativas culturais a respeito do sono os levam a acreditar que esse padrão de sono é disfuncional. Assim, os idosos lutam contra o seu período de maior sonolência, na expectativa de que, ao atrasar o horário de início de sono, irão acordar mais tarde no dia seguinte, podendo, portanto, acompanhar o ritmo dos seus familiares. Entretanto, essas medidas geralmente são infrutíferas, uma vez que mesmo combatendo sua sonolência fisiológica e indo dormir mais tarde o idoso mantém o despertar precoce, em decorrência do avanço de fase.6,7 Dessa forma, observa-se que o desejo de se encaixar na rotina do lar implica pior qualidade de sono do que a modificação circadiana em si.
O ciclo circadiano sono-vigília em humanos é controlado pelo núcleo supraquiasmático do hipotálamo anterior (NSHA), que por sua vez responde a estímulos endógenos, como a temperatura corporal e a melatonina, e a estímulos exógenos, como a luminosidade. Idosos e pessoas restritas, em geral, realizam menos atividade a céu aberto, o que compromete a sua exposição à luminosidade natural, afetando o ciclo circadiano de sono-vigília. Observa-se também a deterioração do NSHA como resultado do processo de envelhecimento.
Pessoas restritas têm suas rotinas grandemente impactadas, o que muitas vezes acarreta uma série de prejuízos em termos de higiene do sono. É importante que a equipe de atenção domiciliar esteja atenta a esse fator como importante causador de insônia.
O Quadro 2 apresenta os diagnósticos diferenciais de insônia mais relevantes para a prática clínica.
Quadro 2 Diagnósticos diferenciais de insônia
Fonte: elaborado pelos autores.
Segundo o DSM-V, a insônia se caracteriza pela queixa de insatisfação com a qualidade ou quantidade do sono, associada a pelo menos um dos seguintes fatores: a) dificuldade de iniciar o sono; b) dificuldade de manter o sono; c) despertar precoce pela manhã com dificuldade de retomar o sono. É necessário que a perturbação cause prejuízo em algum domínio da vida (sociais, profissionais, comportamentais etc.) e que não possa ser bem explicado por outra condição. Na prática, é um diagnóstico de exclusão.1,3
A insônia com frequência correlaciona-se a outros transtornos, podendo ser físicos ou mentais, bem como decorrentes do uso de medicamentos e substâncias de abuso. Algumas condições associadas à insônia incluem transtorno depressivo, transtorno de ansiedade, doença de Parkinson, doença de Huntington, hipotireoidismo, hipertireoidismo, doenças musculoesqueléticas dolorosas etc.3,8
Algumas classificações subdividem a insônia como primária ou secundária, porém essa classificação foi substituída no ICSD-3 (International Classification of Sleep Disorders), pois essa diferenciação não auxiliava na acurácia diagnóstica. Atualmente prefere-se classificar a insônia em aguda ou crônica a depender da sua duração. A insônia aguda dura de dias a semanas, por um período geralmente inferior a 3 meses. A insônia crônica tem duração superior a 3 meses e ocorre pelo menos três vezes por semana.
As parassonias podem ocorrer no sono não REM (ex.: sonambulismo, despertar confusional e terror noturno) e no sono REM (ex.: distúrbio comportamental do sono REM, paralisia do sono isolada recorrente).9
Os distúrbios respiratórios do sono incluem os distúrbios obstrutivos e centrais. A SAOS (síndrome da apneia obstrutiva do sono), comum em nosso meio, é percebida pelo paciente ou pelo familiar que observa seu sono. É causa frequente de disfunção diurna, em decorrência da fragmentação do sono e fator de risco para doenças cardiovasculares importantes, como o acidente vascular encefálico e infarto agudo do miocárdio. Está frequentemente associada à obesidade, e seu diagnóstico pode ser confirmado pelo exame de polissonografia.3,10
Os distúrbios dos movimentos do sono incluem o bruxismo (ranger de dentes), a síndrome dos movimentos periódicos dos membros (caracterizada por arremessos das pernas durante o sono, provocando despertares e fragmentação do sono) e a síndrome das pernas inquietas (descrita como um desconforto das pernas associada a uma urgência em movê-las).11-13
Por fim, os distúrbios do ciclo circadiano incluem o atraso da fase de sono, o avanço da fase de sono, o padrão irregular do ciclo sono-vigília, a síndrome do ciclo vigília-sono diferente das 24 horas, entre outros.14 O Quadro 3 apresenta informações sobre alguns distúrbios dessa categoria.
Quadro 3 Distúrbios do ciclo circadiano
Fonte: Smith AKA, 2017.14
O Quadro 4 lista algumas estratégias preventivas para a insônia.15,16
Quadro 4 Medidas preventivas para insônia
Fonte: Ohayon MM, 2002;15 Ohayon MM; Sagales T, 2010.16
As intervenções psicológicas e comportamentais são a primeira linha de tratamento recomendada tanto para as insônias primárias crônicas quanto para as secundárias.17,18 Essas intervenções incluem aconselhamento sobre higiene do sono, a prática de exercícios físicos regulares e intervenções cognitivo-comportamentais, como a terapia cognitivo-comportamental para insônia. Essas intervenções incluem terapia de relaxamento (como relaxamento muscular e biofeedback), terapia do controle de estímulos (que visa abreviar outras atividades incompatíveis com o sono, reassociando a ida para o quarto ou para a cama com o ato de dormir), terapia de restrição de sono (que visa a que o tempo despendido na cama se aproxime à duração do período de sono), terapia cognitiva (que visa trabalhar crenças e atitudes inadequadas em relação ao sono, como falsas expectativas em relação ao tempo de sono necessário ou amplificação de suas consequências), terapia de intenção paradoxal (que visa diminuir a ansiedade pré-sono ao parar de tentar dormir quando não se está com sono na cama).19 A combinação dessas medidas se mostrou mais efetiva do que separadamente.
A implantação dessas medidas pode ser muito desafiadora no contexto da atenção domiciliar, seja pela limitação motora e dependência para cuidados que parte dessas pessoas apresenta, seja pelas condições da habitação que podem envolver uma proporção alta de pessoas por cômodo vivendo naquele domicílio, pouca exposição à luz solar, exposição a temperaturas extremas, exposição a barulho intenso ou outras limitações num contexto de vulnerabilidade. É muito importante que a equipe de atenção domiciliar esteja atenta para a construção de um plano compartilhado centrado na pessoa, que leve o contexto da pessoa sob cuidado em consideração, para maiores chances de sucesso no manejo da insônia e sua qualidade de vida.
A terapia medicamentosa para insônia, quando necessária, deve ser complementar às intervenções cognitivo-comportamentais reconhecidas como primeira linha de tratamento.20 Sua prescrição é considerada indicada quando houver falha do tratamento não farmacológico por no mínimo 4 semanas ou situações em que o impacto na funcionalidade justifique uma medida mais imediata.
É importante destacar que a Choosing Wisely Campaign recomenda que não se utilize como primeira escolha o tratamento farmacológico, com benzodiazepínicos, outros sedativos hipnóticos, antipsicóticos em adultos mais velhos ou adultos com insônia crônica.21 As medicações hipnóticas e sedativas indicadas devem ser usadas de forma breve, no máximo por 4 semanas e na menor dose efetiva. As possibilidades de tratamento medicamentoso são descritas no Quadro 5.
Quadro 5 Opções farmacológicas para o manejo da insônia
Fonte: elaborado pelos autores.
Anti-histamínicos, analgésicos, barbitúricos e hidrato de cloral não são recomendados, por falta de evidências da efetividade e/ou baixa segurança. Valeriana e melatonina carecem de maiores evidências de benefício e segurança.
Pacientes com má resposta ao tratamento proposto pela equipe de atenção domiciliar, sobretudo aqueles com comprometimento significativo da qualidade de vida, podem se beneficiar de referência à atenção secundária. Pacientes com distúrbios respiratórios do sono demandam avaliação especializada para orientação terapêutica.
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