O que é rastreamento médico

Sumário

O que é rastreamento médico

Mario Ferreira Júnior, Ricardo Vasserman de Oliveira, Arnaldo Lichtenstein, Maria Helena Sampaio Favarato, Mílton de Arruda Martins

Sumário

 

Pontos-chave

  • Rastreamento médico consiste na tentativa de identificar doenças de forma precoce, antes que elas se manifestem clinicamente, por sintomas ou sinais.
  • As principais doenças rastreáveis são as que apresentam alta incidência, prevalência e morbimortalidade, além de período pré-clínico prolongado.
  • A identificação da exposição a fatores de risco para a doença que se pretende rastrear tende a melhorar o valor preditivo do rastreamento.
  • O método de rastreamento ideal deve apresentar boa acurácia para o diagnóstico pré-clínico, fácil acesso e segurança para o paciente, além de ser custo-efetivo.
  • Só se justifica rastrear doença para a qual existe tratamento precoce capaz de mudar a história natural da doença, melhorar a qualidade de vida ou aumentar a sobrevida.
  • Rastreamentos com potencial de causar qualquer tipo de dano físico, psíquico ou social devem ser objeto de decisão compartilhada entre médico e paciente.

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Definição, objetivos e a quem se destina o rastreamento médico

Rastreamento é uma intervenção médica pela qual se procuram indícios ou pistas de anomalias de natureza bioquímica, genética, morfológica, funcional ou comportamental, que tenham relevância à saúde individual ou coletiva. Tem como objetivo diagnosticar doenças ou identificar problemas que afetam a saúde, mas que ainda não se manifestaram na forma de sintomas ou sinais evidentes ou que, pelo menos, não foram percebidos pela pessoa consultada, ou seja, encontram-se em situação pré-clínica. Popularmente, o rastreamento é também chamado check-up, além de rastreio ou busca ativa.1

É comum ouvir alguém dizendo “Não ando me sentindo bem, preciso fazer um check-up!” Essa pessoa não sabe, mas está cometendo um erro conceitual. Por princípio, o rastreamento médico destina-se a indivíduos da população geral sem manifestações clínicas ou queixas relacionadas ao que se pretende rastrear. Quando uma pessoa tem sintomas, ela precisa não de um check-up ou rastreamento médico, mas de uma consulta que desencadeie uma investigação orientada por suas queixas, até chegar ao diagnóstico.

É possível, entretanto, associar o rastreamento médico a uma consulta de investigação diagnóstica, desde que o que se pretende rastrear não se relacione à queixa do(a) paciente. Por exemplo: uma mulher que procura o médico ginecologista pela presença de um nódulo na mama não estará rastreando câncer de mama, e sim investigando um nódulo suspeito, com abordagem específica em busca do diagnóstico. Porém, nesta mesma consulta, o(a) médico(a) poderá também realizar rastreio de doenças cardiovasculares, metabólicas e distúrbios psicossociais.

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Rastreamento médico como antiga ferramenta de promoção da saúde

O rastreamento médico é uma das mais concretas contribuições da medicina clínica para a prevenção de doenças e promoção da saúde. De modo geral, espera-se que, a partir do diagnóstico pré-clínico, possam-se adotar tratamentos eficazes e ações preventivas capazes de prolongar a sobrevida, evitar ou atenuar o sofrimento físico e mental, e proporcionar uma melhor qualidade de vida às pessoas.

Bastante popular nos dias de hoje, o check-up médico é, todavia, uma atividade centenária. Já no final do século XIX, grandes seguradoras de saúde promoviam exames médicos preventivos com a finalidade de conhecer melhor o estado de saúde de seus segurados. Ao longo do início e meados do século XX, o rastreamento médico (basicamente, na época, um exame clínico minucioso) ganhou impulso entre as forças armadas e empresas, na tentativa de manter soldados e trabalhadores saudáveis, entendendo-se que assim seriam, respectivamente, mais combativos e produtivos, e assim gerassem mais eficiência e economia.

Mas foi a partir dos anos 1970 que o check-up ficou mais acessível à população em geral e adquiriu o formato pelo qual é mais conhecido hoje: um painel predefinido de exames clínicos, laboratoriais e de imagem, supostamente capaz de fornecer uma fotografia momentânea completa da saúde. Essa evolução resultou da explosão tecnológica vivida na medicina do final do século XX, da maior disponibilidade e acesso a informações e serviços médicos, e da crescente busca por saúde e qualidade de vida.

É difícil imaginar uma aspiração mais legítima e atraente para qualquer ser humano, nos dias de hoje, do que viver mais e com mais saúde. Se exames médicos feitos com certa periodicidade podem desvendar doenças no seu início e, de algum modo, sinalizar a chance de tornar aquela aspiração uma realidade, esses exames tornam-se um bem de interesse público, cujo mercado consumidor potencial tende a englobar grandes contingentes de pessoas. E foi assim que o check-up médico ganhou fama e se difundiu, nas últimas décadas.

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Rastreamento médico baseado em evidências científicas

Como em tudo que envolve ciências da saúde, não basta supor que alguma intervenção médica, por mais aceita e popular que seja, produza na prática o efeito que, em tese, dela se espera. É preciso provar que funciona. Por isso, o rastreamento e suas promessas têm atraído a atenção de pesquisadores que, para validá-los, conduzem estudos que, por sua vez, são alvo de revisões sistemáticas da literatura especializada e meta-análises. A finalidade disso tudo é analisar em profundidade as conclusões das pesquisas sobre o mesmo tema, aceitando-as ou rejeitando-as, com base científica sólida.

Desde a década de 1980, entidades como a US Preventive Services Task Force (USPSTF) e a Canadian Task Force on Preventive Health Care (CTFPHC), além de outras, empenham-se em oferecer diretrizes preventivas baseadas em boas evidências científicas. Para isso, grupos multidisciplinares de especialistas identificam, selecionam, analisam e interpretam os resultados de estudos publicados sobre rastreamento, a maior parte deles produzidos em países desenvolvidos, e, posteriormente, elaboram e publicam recomendações de alta qualidade científica.

Essa forma de consolidação do conhecimento médico com base em evidências científicas de boa qualidade metodológica tende a ser progressista, na medida em que passa a romper certos paradigmas antigos. Afirmações como: “o diagnóstico precoce da doença permite tratá-la mais cedo, o que é sempre melhor” ou “fazer exames preventivos nunca prejudica o paciente”, antes tidas como verdades inquestionáveis, inclusive no meio médico, passam a ser apenas relativas quando examinadas sob a “lupa” do pesquisador científico.

Em outras palavras, o check-up baseado em evidências científicas leva em conta que, apesar da comprovada utilidade do rastreamento em inúmeras circunstâncias, estudos mostram que o seu uso abusivo ou inadequado tem, também, o potencial de prejudicar a saúde. Exemplificando: um teste mal indicado, que resulta em falso-positivo, pode levar o profissional de saúde a incorrer em erro diagnóstico, tratamento desnecessário e piora da qualidade de vida do paciente. Ou seja, exatamente o inverso do que se pretende.

As recomendações da CTFPHC e USPSTF, por serem periodicamente atualizadas e se basearem nas melhores evidências científicas disponíveis, são consideradas referências fidedignas para políticas de saúde e programas de rastreamento implantados em diversos países. Entretanto, é bom lembrar que os públicos-alvos prioritários das recomendações de ambas são a população canadense e a estadunidense, respectivamente. É muito improvável que os estudos dos quais essas recomendações são originadas, incluindo aqueles que não são norte-americanos, representem acuradamente as inúmeras diferenças ambientais, étnicas, socioeconômicas e culturais existentes nos outros países do mundo.

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Premissas gerais para se fazer um bom rastreamento médico

Genericamente, um bom rastreamento médico deve levar em consideração os seguintes aspectos:

  1. etiopatogenia e importância sanitária regional da doença ou problema a rastrear;
  2. disponibilidade, segurança, acurácia, reprodutibilidade, relevância epidemiológica e grau de aceitação do teste que visa o diagnóstico pré-clínico;
  3. disponibilidade, segurança, acesso, eficácia e efetividade da prevenção, tratamento precoce ou outra intervenção que seja capaz de mudar a história natural da doença no período pré-clínico;
  4. condições de saúde, exposição a fatores de risco, preferências e valores do grupo ou pessoa consultada, que devem ser bem informados e poder compartilhar de decisões referentes ao rastreamento;
  5. respeito aos princípios éticos da prática médica;
  6. viabilidade de custeio de toda a cadeia de eventos desde o rastreamento (incluindo as suas repetições periódicas) até a reabilitação.

Não basta, então, apenas a disponibilidade de bons testes de rastreamento nos serviços de saúde e de boas evidências científicas internacionais. O grande desafio para fazer do check-up um instrumento de prevenção cada vez mais acurado e efetivo para a saúde de brasileiros, realçando suas qualidades e mitigando distorções, passa, na medida do possível, pela ponderação das evidências científicas internacionais com dados epidemiológicos e estudos produzidos no Brasil.

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O que vale a pena rastrear em saúde

A importância de conhecer a prevalência e a incidência do que se pretende rastrear

Nem todas as doenças ou problemas que podem prejudicar ou colocar em risco a saúde se prestam ou merecem ser incluídos em uma lista de rastreamento médico. Como ponto de partida, um problema de saúde é candidato a fazer parte do rastreio se a sua prevalência for significativa. Porém, não existem linhas divisórias nítidas capazes de definir alta, média ou baixa prevalência, aplicáveis a todos os problemas de saúde.

De modo geral, o rastreamento é justificável para os problemas que permanecem ativos na população-alvo em uma frequência e por tempo suficientes para serem identificados, de algum modo, em fase pré-clínica. Neste grupo, encontram-se exemplos de doenças infecciosas transmissíveis, metabólicas, cardiovasculares e cânceres, além de problemas relacionados a distúrbios mentais e psicossociais.

Alta incidência também é relevante, mas, por si só, não é um pré-requisito para rastrear, pois fatores como rápida letalidade, cura espontânea ou alta eficácia do tratamento podem dificultar, impossibilitar ou tornar o diagnóstico pré-clínico inútil. Justifica-se rastrear doenças raras (p. ex., síndromes hereditárias do metabolismo, de autoimunidade ou de cânceres) na idade adulta apenas em casos selecionados de antecedentes familiares muito expressivos.

Por outro lado, mesmo doenças de alta prevalência nem sempre merecem ser rastreadas, ou por seu impacto na saúde ser pequeno, ou por existirem outros meios mais adequados de abordá-las. Moléstias parasitárias intestinais são um exemplo: apesar de prevalentes em comunidades carentes, a realização periódica de exames protoparasitológicos tem pouco valor se comparada às medidas prioritárias de promoção da saúde coletiva (saneamento básico, água tratada etc.) ou, até mesmo, à prescrição empírica de antiparasitários de baixa toxicidade.

Morbimortalidade e duração pré-clínica associadas ao que se vai rastrear

Outras características importantes dos problemas de saúde rastreáveis são a morbidade e a mortalidade a eles associadas. Enfermidades que causam grande sofrimento, físico ou mental, ou desdobram-se na forma de complicações clínicas graves, sequelas ou incapacidade, ou ainda que elevam a mortalidade precoce, são alvos prioritários de programas de rastreamento médico. As doenças cérebro e cardiovasculares, por exemplo, são as principais causas de mortes no Brasil. Não surpreende, portanto, o fato de que a maioria dos check-ups direcione atenção prioritária para as mesmas ou, mais concretamente, para os seus fatores de risco.

Por outro lado, às vezes, é a gravidade de uma complicação clínica no curso de uma doença, mesmo que assintomática e de baixa letalidade, que já justifica o rastreamento. É o caso, por exemplo, de infecção genitourinária por clamídia em mulheres jovens. Esta, se não detectada e tratada, pode causar infertilidade ou abortamento, consequências trágicas de uma infecção assintomática, aparentemente, banal.

Doenças de evolução crônica, com períodos pré-sintomáticos que se arrastam por muito tempo, são mais afeitas a serem rastreadas do que as doenças agudas, nas quais o desfecho (cura, sequela ou óbito) acontece mais rapidamente. É possível entender esse conceito lembrando-se, por exemplo, de que o diabete melito do tipo 2 (DM2) ou a hipertensão arterial sistêmica (HAS) chegam a permanecer vários anos sem provocar sintomas antes que sejam detectadas. Ao longo desse período, existem várias oportunidades de diagnóstico, por meio de dosagens de glicemia de jejum ou hemoglobina glicada (HbA1c) e aferições da pressão arterial. Já doenças agudas ou subagudas, de evolução mais rápida até o desfecho (por exemplo, um câncer altamente agressivo), acabam por escapar dos rastreamentos periódicos.

Viés de duração da doença

Essa dificuldade de rastrear doenças de evolução mais rápida e agressiva é causa, inclusive, de um defeito inerente ao rastreamento, conhecido como viés de duração da doença, ilustrado na Figura 1.

Figura 1 Ilustração gráfica do viés de duração da doença. As linhas de cor cinza indicam os casos diagnosticados em alguma das rodadas de rastreamento (R).

Imagine que um certo tipo de câncer possa evoluir de duas formas diferentes. Às vezes, comporta-se de modo muito agressivo, desenvolve grandes massas tumorais e metástases, deteriora a saúde do(a) paciente e, em semanas ou poucos meses, leva ao óbito. Outras vezes, apresenta-se mais brando, evoluindo lenta e progressivamente ao longo de muitos meses ou anos, sem que o(a) paciente se queixe de qualquer sintoma.

Qual dessas duas formas de evolução seria mais facilmente diagnosticada por um rastreamento anual ou bienal? A segunda, certamente. Apesar do benefício potencial do diagnóstico pré-clínico de algumas dessas neoplasias menos agressivas, a tendência de que estas sejam as mais detectadas acaba por desviar o rastreamento médico do seu objetivo. Tumores mais graves e letais, ou seja, de maior importância clínica, deixam de ser diagnosticados e tratados a tempo, em detrimento dos menos agressivos e, provavelmente, menos letais. Há evidências de que o viés de duração da doença ocorra, por exemplo, com as neoplasias de próstata, sendo as mais indolentes as mais frequentemente identificadas.

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Os bons métodos de rastreamento

Consulta específica de prevenção ou rastreamento oportunista?

Historicamente, estabeleceu-se o exame médico completo (a consulta médica composta de anamnese detalhada e exame físico completo) como a primeira etapa de um check-up médico. Ao longo das últimas décadas, porém, inúmeras revisões sistemáticas de estudos científicos falharam em demonstrar a sua utilidade. Não foram encontradas evidências de que essa prática reduza a mortalidade de pessoas que a ela se submetem.

Por outro lado, há evidências de que riscos à saúde futura possam ser identificados com a realização ou solicitação oportunista de exames preventivos (clínicos, laboratoriais ou de imagem) durante visitas médicas, mesmo nas quais o exame clínico completo não é realizado. É o caso das consultas motivadas por queixas de sintomas simples ou apenas para obter orientação ou aconselhamento médico, retorno eletivo para verificar resultado de tratamento, avaliação de aptidão ao trabalho, perícia médica etc.

Em todas essas situações, a equipe de saúde deve estar preparada para propor exames de rastreamento e intervenções adequadas a cada paciente, principalmente àqueles que não possuem médicos(as) de referência ou que não tenham por hábito submeter-se a consultas regulares, por exemplo a cada 3 a 5 anos; para estes, qualquer contato com o sistema de saúde é uma oportunidade para alavancar a prática preventiva. Vale lembrar, entretanto, que campanhas de check-ups com painéis fixos de exames que desconsiderem as peculiaridades e necessidades de saúde de cada pessoa, individualmente, carecem de validação científica e devem ser evitadas.

Anamnese e exame físico dirigidos a itens específicos, questionários estruturados, testes laboratoriais e exames funcionais e de visualização são meios usados para rastrear doenças e outros problemas de saúde em indivíduos assintomáticos. A utilidade de cada um para o rastreamento é determinada por suas características intrínsecas, bem como por fatores que possam interferir na sua aplicação prática.

Apenas com base no sexo, idade, antecedentes familiares e histórico de exposição a fatores de risco já é possível construir rastreamentos médicos individualizados, capazes de promover tratamentos ou intervenções preventivas com potencial de impactar, positivamente, a qualidade de saúde e vida. Controle de doença em fase pré-clínica, mudança de hábito alimentar, retomada da atividade física, cessação do tabagismo, uso de equipamento de proteção individual e adesão a tratamentos são exemplos disso. Não há base científica que justifique a necessidade de um exame médico completo e detalhado para essa finalidade, como se imaginava no passado, nem de campanhas de check-ups com exames padronizados não individualizados.

Sensibilidade, especificidade e valores preditivos dos testes de rastreamento

A primeira propriedade que se espera de um bom método de rastreamento é que ele seja sensível, isto é, que detecte o problema de saúde já existente e incipiente, com pouca chance de erro ou falha na sua detecção. Em outros termos, espera-se que ele tenha um baixo percentual de falso-negativos. A sensibilidade ideal é 100%, situação na qual todos os casos existentes da doença rastreada seriam detectados, com nenhum resultado falso-negativo. Na vida real, valores de sensibilidade de 80% a 90% são bastante aceitáveis, como acontece, por exemplo, na aferição da pressão arterial para o diagnóstico da HA ou a aplicação do questionário CAGE para detectar o consumo preocupante de bebida alcoólica.

Os métodos de rastreamento não necessariamente definem a presença da doença, ou seja, frequentemente são necessários outros exames ou testes para que se faça o diagnóstico definitivo. Algumas vezes, o rastreamento serve apenas para indicar se uma pessoa (ou um grupo de pessoas, no caso de programa de rastreamento coletivo) tem alta ou baixa probabilidade de apresentá-la, conforme o resultado do exame seja positivo ou negativo. Mas a conclusão definitiva depende, em geral, de outros exames. Por exemplo: após uma mamografia cuja classificação foi Bi-Rads 4, é necessário fazer uma biópsia de nódulo mamário; um homem cujo resultado de PSA (antígeno específico da próstata) está acima do valor de referência precisa de exames de imagem e estudo histopatológico para a confirmação e o estadiamento do câncer da próstata.

Alta especificidade (poucos resultados falso-positivos), apesar de bem-vinda, não é, portanto, um pré-requisito obrigatório para testes de rastreamento, desde que outros exames mais específicos possam ser feitos, subsequentemente, de forma complementar, para confirmar os achados do rastreio. Por fim, a sensibilidade e a especificidade combinadas com a prevalência na população-alvo do rastreamento permitem estimar os seus valores preditivos (positivo e negativo), que são variáveis úteis no planejamento de programas coletivos de rastreamento médico.

Segurança dos testes: acurácia, precisão, reprodutibilidade, acesso e custos

Do ponto de vista técnico, espera-se que toda e qualquer ação que vise o diagnóstico pré-clínico, incluindo manobras de exame físico, questionários estruturados, testes de bioquímica do sangue ou exames de imagem ou visualização direta, seja segura para o paciente, não colocando, portanto, a sua integridade física ou mental em risco.

Essa preocupação é mais pertinente no caso de procedimentos invasivos como punções-biópsias ou estudos endoscópicos, principalmente quando há chance de complicações graves e sequelas do procedimento em si ou do preparo para executá-lo (p. ex., perfuração intestinal, sepse ou insuficiência renal aguda associadas à colonoscopia). De preferência, procedimentos de rastreamento devem ser simples e de fácil aplicação, pouco invasivos, e exigir o mínimo necessário de custos e infraestrutura laboratorial e hospitalar.

Precisão e acurácia dos exames, reduzindo a probabilidade de erros de análise, interpretação ou divulgação de resultados (principalmente no caso de laudos descritivos), são esperadas. Com relação aos testes laboratoriais, em especial, há toda uma cadeia de procedimentos pré-analíticos, analíticos e pós-analíticos, que necessita de controle rigoroso para garantia da qualidade. E a boa reprodutibilidade, ou seja, a capacidade de se obter resultados semelhantes para um mesmo teste, caso ele necessite de repetição ou revalidação, interna ou externa, aumenta a confiabilidade e amplia a sua capilaridade e possibilidades de acesso na rede de atenção à saúde.

Fácil disponibilidade, amplo acesso e baixo custo são fatores que completam as qualidades mínimas necessárias para tornar o rastreamento mais atraente e custo-efetivo. Ajudam, também, a fazer com que a população-alvo se torne mais aderente a ele. Sem expectativa de adesão significativa, um programa de rastreamento corre o risco de ser uma iniciativa mal-sucedida, podendo até ser abortado antes mesmo da sua implementação.

Sobretestagem (overtesting) e sobrediagnóstico (overdiagnosis)

A experiência prática mostra que fazer exames médicos, clínicos, laboratoriais e de imagem goza de alta popularidade em nosso meio, o que, por si só, tende a alavancar a adesão a rastreios médicos. Entretanto, para escapar do uso excessivo e inadequado dos meios de diagnóstico e para que o rastreamento médico baseado em evidências científicas alcance a maior adesão possível, profissionais da área da saúde, incluindo pesquisadores, educadores, prestadores de serviços e gestores, têm papel relevante na difusão de informações e orientações, que desmistifiquem o valor da sobretestagem, prática comum, mas capaz de comprometer a prevenção secundária de doenças.

Estudos científicos já revelaram que, quanto mais exames laboratoriais são solicitados, maior é a probabilidade de variações indevidas de alguns resultados em relação à normalidade. Lembra-se ainda que para a determinação do valor de referência normal de um exame toma-se como base a forma como essa variável se comporta na maioria da população de estudo. E por maioria, entende-se, em geral, 95% desse grupo, ou seja, em até 5% das pessoas estudadas os resultados de qualquer exame complementar podem estar fora da faixa normal determinada pela maioria, sem que isso signifique, necessariamente, presença de doença ou qualquer outra implicação em termos de saúde.

Um exemplo clássico para ilustrar essa situação são os nódulos, também denominados incidentalomas, muitas vezes identificados em exames de imagem de check-up ou feitos para outras finalidades. Esses nódulos são, em sua maioria, benignos, correspondem a variações da normalidade e não implicam em qualquer consequência para a saúde dos indivíduos portadores. Porém, quando identificados, acabam por gerar angústia e subsequente investigação, com os riscos inerentes a essas práticas.

Esse e outros vieses da sobretestagem podem causar iatrogenia que, segundo alguns autores, deve ser objeto do que eles chamam prevenção quaternária. E há, ainda, o sobrediagnóstico, outro desfecho negativo associado ao rastreamento. Neste caso, não há erro diagnóstico. Trata-se, na verdade, de um efeito colateral da maior capacidade diagnóstica dos testes laboratoriais e exames de imagem, qual seja, detectar alterações orgânicas incipientes, mas que acabam por não progredir nem prejudicar a saúde do(a) paciente.

Um exemplo interessante é a ultrassonografia de tireoide, que ganhou popularidade nos últimos anos como exame preventivo solicitado por muitos médicos. Com essa prática, verificou-se um enorme aumento na incidência de câncer nessa glândula, em mulheres. Porém, no mesmo período, a mortalidade por câncer de tireoide permaneceu praticamente inalterada. Dependendo do ponto de vista, pode-se conseguir explicações diferentes e até contraditórias para essa situação:

  • Um entusiasta acrítico de todos os avanços médicos diria que a mortalidade não aumentou, apesar do aumento da incidência do câncer de tireoide, porque o tratamento desse câncer foi aprimorado e, assim, promoveu mais cura.
  • Já um profissional da saúde mais realista argumentaria que o que aumentou, de fato, foi o diagnóstico de cânceres de tireoide indolentes, assintomáticos, que não trariam consequências de longo prazo.

Uma vez que, analisando-se o período estudado, não houve mudança significativa nas opções de tratamento desses tumores e como a mortalidade não aumentou nem diminuiu, a explicação realista parece ser a mais plausível. Isso é sobrediagnóstico.

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A eficácia de tratamentos ou intervenções precoces

Aspectos do tratamento disponível indicam se vale ou não a pena rastrear

O rastreamento médico é um meio de ajudar pessoas a viverem mais e melhor. Porém, para alcançar esses objetivos é preciso estar atento a algumas premissas peculiares, referentes a tratamentos ou outras intervenções a serem adotadas. Intervenções precoces não seguem, necessariamente, os mesmos princípios ou surtem os mesmos efeitos das intervenções tardias, introduzidas quando o diagnóstico é feito após a manifestação clínica. É importante saber ou estimar de antemão se o tratamento em fase prévia ao aparecimento de sintomas e sinais permitirá que o(a) paciente tenha ganhos, de fato, quando comparado ao tratamento introduzido quando do diagnóstico mais tardio.

Preliminarmente, cabe incluir em um programa de rastreio apenas condições médicas para as quais exista tratamento ou intervenção precoce ou controle eficaz do problema, cujos benefícios potenciais superam eventuais danos à saúde. Usando o exemplo da estenose de carótida (EC) assintomática: uma vez diagnosticada, é de se esperar que haja uma redução de acidentes vasculares encefálicos, inclusive transitórios, após intervenção cirúrgica. Porém, as evidências mostram que, além dos riscos das complicações perioperatórias, o benefício da cirurgia é apenas marginal em relação ao tratamento clínico convencional para doenças vasculares. Além disso, o controle de comorbidades (hipertensão arterial, diabete melito, hipercolesterolemia) e o incentivo a hábitos saudáveis (cessação do tabagismo, perda de peso, alimentação equilibrada, atividade física) independem do rastreamento da EC para serem prescritos.

Problema diagnosticado implica tratamento ou intervenção imediata

Havendo intervenção, tratamento ou controle eficaz, pode-se proceder ao rastreamento, mas somente se houver, também, garantia de acesso rápido e completo a todos os dispositivos que compõem o procedimento terapêutico. Diagnosticar precocemente um aneurisma de aorta de indicação cirúrgica, em um homem de 65 anos, em bom estado de saúde, é extremamente importante, mas o tratamento deve ser imediato e não postergado em fila de espera, que atrase a cirurgia por meses ou anos.

Na mesma linha, só é recomendável rastrear a depressão, para a qual se dispõe atualmente de uma boa gama de opções terapêuticas, quando houver certeza de acesso a todo tipo de tratamento medicamentoso ou apoio psicoterápico necessários. Outro exemplo é a mamografia para rastreio do câncer de mama, que só faz sentido pedir se além do exame estiverem disponíveis o serviço de biópsia e o acesso a cirurgia, radio e quimioterapia. Em resumo: é da boa prática médica executar o rastreamento apenas quando existir tratamento, intervenção ou controle de doença eficaz, de acesso rápido, fácil e completo.

Não há suporte científico que justifique rastrear doença ou problema de saúde para o qual não existe cura ou outro tipo de controle ou intervenção seguramente eficaz, mesmo que haja um bom exame disponível para diagnosticá-lo em fase inicial. Um exemplo, infelizmente ainda atual, é a demência. Há questionários de boa sensibilidade, aplicáveis em consultório, capazes de detectar alterações bastante precoces das funções cognitivas em idosos. Entretanto, não se comprovou, até o momento, que os medicamentos disponíveis para o seu tratamento consigam alterar, significativa e positivamente, a evolução natural da doença. Além disso, a maioria deles causa efeitos colaterais suficientemente incômodos a ponto de serem rejeitados pelos pacientes. A abordagem dos casos de demência, pelo menos por enquanto, ainda deve se restringir às situações já clinicamente identificáveis pelo paciente ou pessoas próximas de seu convívio. No caso desse tipo de doença, o rastreio periódico de idosos assintomáticos e o diagnóstico pré-sintomático ainda têm pouco a acrescentar.

Tratamento agressivo ou paciente frágil exigem cautela no rastreamento

É questionável, também, rastrear situações em que apesar de existir tratamento, ele tenha alto risco de complicações ou sequelas, seja experimental ou apresente resultados duvidosos. Junte-se a esses itens uma avaliação desfavorável do estado geral de saúde do(a) paciente com uma expectativa ruim de sobrevida, no momento do check-up, para que este não se justifique.

Avalie, por exemplo, a razoabilidade de rastrear o câncer colorretal em uma mulher de 73 anos, diabética, hipertensa, portadora de insuficiência renal grau 4 e insuficiência cardíaca com fibrilação atrial crônica, cuja expectativa de sobrevida em 10 anos calculada por uma ferramenta validada para aplicação clínica seja menor que 30% (ou seja, risco de morte maior que 70%). A colonoscopia seria o exame de rastreamento ideal para ela? Um teste imunoquímico positivo para hemoglobina humana nas fezes seria menos problemático? Qual a possibilidade dessa paciente suportar o tratamento de um câncer colorretal diagnosticado por rastreamento? Há esperança de melhora da expectativa de sobrevida calculada se o câncer for diagnosticado e tratado? Essas são perguntas importantes a serem respondidas, preferencialmente antes de submeter a paciente ao exame.

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Viés de tempo ganho

A expectativa de sobrevida com ou sem rastreamento remete, inclusive, a uma segunda característica (ou possível defeito) inerente aos exames feitos para diagnóstico pré-clínico de doenças: o viés de tempo ganho.

A Figura 2 ilustra duas situações hipotéticas distintas que poderiam ser vividas por uma mesma paciente com câncer de mama. A linha superior mostra a situação que a paciente vivenciaria caso se negasse a fazer mamografia preventiva a partir dos 50 anos de idade. O diagnóstico do câncer de mama seria feito aos 60 anos, a partir do surgimento de sintomas, e o tratamento da neoplasia por meio de cirurgia e radioterapia proporcionaria um certo tempo de sobrevida, por exemplo, até os 70 anos. Na linha inferior, indica-se outra situação na qual a mamografia de rastreamento detectaria logo aos 55 anos de idade a mesma neoplasia maligna em fase incipiente, que seria igualmente tratada, e o óbito sobreviria aos 71 anos de idade.

Figura 2 Ilustração gráfica do viés de tempo ganho.

Uma primeira consideração a ser feita é a respeito da sobrevida. Comparado à situação do diagnóstico por sintomas (linha superior), o rastreamento (linha inferior) promoveria, no fim das contas, um ganho real de sobrevida de 1 ano para a paciente (71 menos 70). Entretanto, se contada a partir do momento do diagnóstico, a sobrevida a partir dos sintomas seria de 10 anos (de 60 a 70 anos de idade) contra uma sobrevida aparente de 16 anos (dos 55 aos 71 anos), se rastreado precocemente. Isso dá a impressão de um ganho total de sobrevida de 6 anos com o rastreio, o que é falso. O que aconteceria na segunda hipótese (linha inferior), em verdade, seria simplesmente uma antecipação do diagnóstico em 5 anos e não ganho real em anos de vida.

Concretamente, a mesma paciente poderia conviver com o câncer por 10 anos (linha superior) ou por 16 anos (linha inferior). Os 5 anos de diferença entre os 2 momentos do diagnóstico (viés de tempo ganho) são importantes também quando se considera a qualidade de vida que a paciente teria em uma ou outra situação. É de se supor que 10 anos de sofrimento, físico e mental, provocado pela doença e seu tratamento seriam esperados no primeiro caso, a partir dos 60 anos, época do início da manifestação clínica e do diagnóstico. Por outro lado, o rastreamento só terá sido uma intervenção efetivamente útil se a partir do diagnóstico pré-clínico do câncer de mama aos 55 anos, a paciente experimentar menos sofrimento nos seus próximos 16 anos de vida, o que poderia não ocorrer, caso surgissem complicações do tratamento.

Tratamento muito eficaz pode reduzir a importância do diagnóstico precoce

Evidências científicas recentes têm demonstrado que a melhora da qualidade de vida e o aumento de sobrevida de mulheres com câncer de mama dependem mais do aprimoramento do tratamento do que do momento do diagnóstico, propriamente dito.

Vale sempre relembrar que o objetivo do rastreamento médico é proporcionar aos pacientes mais anos de vida saudável e não de doença ou de medo de adoecer. É muito comum, atualmente, a realização de painéis para identificar genes ou mutações genéticas associados a vários tipos de agravo à saúde, mesmo em pessoas saudáveis. A finalidade é antecipar o conhecimento do risco para que a prevenção possa ser posta em prática. Entretanto, a presença do gene não implica, necessariamente, que ele se expressará ao longo da vida da pessoa. Não é certo, também, que exista forma eficaz de prevenir a expressão do gene. Além disso, intervenções agressivas (p. ex., mastectomia e ooforectomia preventivas em portadoras de mutações de BRCA1/2 – Breast Cancer genes 1 ou 2) ou tratamentos experimentais podem trazer sérias complicações sem garantia de proteção, o que faz a inclusão do mapeamento genético no check-up parecer uma iniciativa ainda objeto de estudos.

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A individualização do rastreamento médico

Determinantes de doenças ou de outros agravos à saúde coletivos e individuais

Em que pese que eventos relacionados ao binômio saúde-doença possuam determinantes coletivos (sociais, culturais, ambientais, econômicos etc.), na linha de tornar o rastreamento médico um conjunto de procedimentos cada vez mais personalizado, é esperado que fatores individuais sejam levados cada vez mais em conta antes de executá-lo.

A avaliação do estado de saúde global e a estimativa de sobrevida a médio e longo prazo do paciente já foram lembradas neste texto. A sua importância é tão maior quanto mais avançada é a idade ou maior é o número de doenças preexistentes. Nesses casos, submeter o(a) paciente a um exame de rastreamento invasivo que pode lhe causar um efeito adverso ou diagnosticar uma nova morbidade cujo tratamento agressivo será difícil de enfrentar, devem ser objeto de reflexão prévia cuidadosa. Como regra geral, rastreamentos invasivos a partir de 65 anos só se justificam para pacientes em bom estado geral de saúde e com boa expectativa de sobrevida em 10 anos.

Como exemplo de estimativa de sobrevida ou risco de mortalidade em 10 anos (RM10) de uma pessoa, existe o cálculo do Índice de Suemoto, disponível na plataforma E-prognosis, uma ferramenta já validada para a população geriátrica brasileira (ver Anexo A). Trata-se, basicamente, de um instrumento de apoio à decisão médica e não de definição de conduta, em si mesmo. A título de referência, pessoas abaixo de 65 anos, consideradas em ótimo estado de saúde para a idade apresentam, pelo Índice de Suemoto, RM10 entre 11% e 15%, se homem, e entre 8% e 10%, se mulher.

Aos 80 anos, idade a partir da qual recomendações de rastreamento médico agressivo são raras e sujeitas a cuidadosa avaliação individual, os RM10 mínimos de pessoas saudáveis e com bons hábitos são de 50% e 37% para homens e mulheres, respectivamente. Não parece razoável propor rastreamentos invasivos que gerem tratamentos agressivos para pessoas com RM10 acima desses valores ou, pelo menos, caso algum rastreio seja recomendado, que o(a) paciente seja informado(a) a respeito dos seus riscos para poder compartilhar da decisão de rastrear ou não.

Fatores preexistentes e estimativas de risco de adoecimento

Na busca, ainda, da individualização dos diagnósticos pré-clínicos, o rastreio de doenças e outras condições de interesse para a saúde (hábitos e comportamentos, por exemplo) pode ser precedido por uma avaliação preliminar da exposição a fatores de risco que aumentem a probabilidade individual de adoecimento, de traumas físicos ou de outros constrangimentos indiretamente ligados à saúde psicossocial (p. ex., vergonha, estigmatização, discriminação, desdobramentos legais, policiais e financeiros).

Fatores de risco podem ser identificados por meio de anamnese cuidadosa, check-lists e questionários qualitativos ou quantitativos (quando usam escalas de escores numéricos), muitos deles avaliados e validados para a população brasileira. São exemplos desse tipo de instrumento de rastreamento: o HARK (Humiliation – Afraid – Rape – Kick), que rastreia violência doméstica contra mulheres, e o PHQ-2 (Patient Health Questionnaire – 2), duas perguntas que ajudam a detectar indícios de depressão.

Instrumentos mais elaborados estão disponíveis em calculadoras que contêm algoritmos capazes de estimar o risco para um determinado evento. São baseados na participação de fatores de risco envolvidos na causalidade do evento avaliado, informação esta extraída de estudos epidemiológicos ou estatísticas populacionais de saúde. O FRAX® (Fracture Risk Assessment Tool), do qual se consegue uma estimativa bastante acurada do risco de fraturas por fragilidade óssea (osteoporose) em 10 anos, foi desenvolvido na Universidade de Sheffield e disponibilizado na internet, inicialmente, para a população do Reino Unido. Atualmente, graças à cooperação científica internacional e estudos regionais, esse instrumento está adaptado para vários outros países, incluindo o Brasil.

Após preencher um formulário on-line no qual são referidas a presença ou ausência de cada um dos principais fatores de risco para osteoporose, a calculadora do FRAX® permite obter a probabilidade do(a) paciente apresentar fraturas em 10 anos. Esse valor pode ser comparado com valores de referência a fim de saber se há necessidade ou não da determinação objetiva da densitometria óssea ou se há potencial benefício para intervenções terapêuticas.

Estudos mostram resultados semelhantes dos cálculos pelo FRAX® sem e com os dados de densidade óssea. O método de rastreamento do risco de fraturas por osteoporose iniciado com o FRAX® e seguido da densitometria óssea, apenas quando necessária, pode servir de modelo a ser usado para outras doenças. Calculadoras de risco, semelhantes ao FRAX®, estão disponíveis para doenças cardiovasculares, diabete e vários tipos de câncer (mama, colorretal e pulmão).

Cada paciente e suas preferências individuais em matéria de saúde

Além da exposição a fatores de risco que podem ser abordados de forma estruturada pelos instrumentos supracitados, o profissional responsável pela solicitação dos exames de rastreio deve manter-se aberto para levar em consideração, também, as preferências individuais dos pacientes. Razões pessoais podem fazer uma paciente relutar a submeter-se ao rastreamento de violência da parte de parceiros; outros hesitam ao responder a questões sobre seu comportamento sexual; e o medo de complicações médicas pode induzir a opção por um teste imunoquímico nas fezes ao invés da colonoscopia para rastrear o câncer colorretal.

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Ética médica e impacto financeiro do rastreamento

Primeiro, não causar dano

A pesquisa de doenças em fase pré-clínica tem uma peculiaridade especial que, conceitualmente, a diferencia de outras ações médicas: trata-se de uma busca ativa em pessoas que, a princípio, estão saudáveis. Isso é o contrário do que acontece em uma consulta comum, quando uma investigação médica reativa é desencadeada a partir de queixas de sintomas já manifestos. É certo que, em qualquer situação, o primeiro compromisso ético do profissional de área médica é nunca fazer mal ao paciente (primun non nocere), mas o peso disso é maior ainda no caso do rastreamento.

O paciente está assintomático para a condição em questão antes de se submeter ao rastreamento de doenças e, portanto, espera-se que assim permaneça após o mesmo. A sua qualidade de vida também deve ser preservada, no mínimo, no mesmo nível anterior ao rastreio, mesmo que uma doença ou um problema prejudicial à saúde tenha sido detectado, e algum tratamento ou intervenção tenha sido instituído. Isso é um motivo a mais para reforçar a ideia de que exames de rastreamento médico devam ser solicitados de forma refletida, seletiva e individualizada.

Dilema ético: teste de rastreamento disponível deve ser sempre solicitado?

Solicitar exames desnecessários ou repeti-los excessivamente é desaconselhável em qualquer situação médica. Sabe-se hoje que o abuso ou uso inadequado de exames pode, por si só, em várias situações, colocar em risco a saúde do paciente (p. ex., anemia por coletas muito frequentes de sangue, lesão renal por excesso de estudos radiográficos contrastados). Por essa razão, seria eticamente reprovável pedir exames de rotina com a finalidade única de satisfazer a curiosidade ou interesses não médicos, como comercializar pacotes extensos de check-up visando a obter retorno meramente monetário ou para multiplicar a execução de procedimentos, tratamentos e internações dispensáveis.

É um direito do(a) paciente ser submetido(a) a qualquer exame de rastreamento disponível? É ético deixar de oferecer aos pacientes exames de rastreamento já implantados em laboratórios? As respostas a essas perguntas expõem, certamente, um dilema ético complexo da medicina: é certo que as pessoas têm seus valores pessoais e seus direitos legais, mas, por outro lado, os profissionais de saúde têm seus princípios e convicções profissionais, que norteiam os seus deveres e responsabilidades, e que ainda são limitados pelo código de ética médica.

O que se espera é que a prática de rastreamento médico seja a mais consensual possível entre médico(a) e paciente. Para tanto, as decisões de quais exames fazer ou deixar de fazer devem ser compartilhadas. Nesse processo, todas as informações necessárias devem ser postas em discussão e detalhes teóricos e práticos analisados, incluindo as expectativas de resultados e suas possíveis consequências. Enfim, se não é ético negar a solicitação de um exame disponível a quem quer que seja, como acreditam alguns, não é menos antiético solicitar exames sem comprovação científica de benefício e deixar de discutir isso, previamente, com seus pacientes. A decisão compartilhada é, portanto, um meio viável no sentido de solucionar esse dilema e melhorar a efetividade das práticas de rastreamento.

Impacto financeiro do rastreamento

De certa forma interligadas à questão ética vale a pena ressaltar aqui, também, as questões de natureza monetária. Quando se pensa no impacto financeiro do rastreamento médico é comum limitar-se ao preço unitário do exame, se é barato ou caro. Na verdade, o custo com a solicitação e realização do exame em si representa apenas uma pequena parte do impacto financeiro do rastreamento médico.

Para que ele seja calculado de forma completa, é preciso incluir na equação outros custos: da consulta inicial; do teste de rastreio propriamente dito; de todos os exames subsidiários feitos para confirmação do diagnóstico e estadiamento da doença ou problema rastreado; da intervenção, procedimento clínico ou cirúrgico adotado no tratamento; de internação hospitalar, se houver; das consultas e exames de acompanhamento médico subsequente; de efeitos colaterais inesperados; de dias perdidos de trabalho; de incapacidades permanentes; de reabilitação; enfim, de todos os desdobramentos possíveis.

Custo-efetividade do rastreamento médico

Além do seu impacto financeiro absoluto, deve ser levada em conta, também, a relação dele com os seus resultados práticos, ou seja, se reduziu a morbimortalidade, para uma boa avaliação da sua custo-efetividade. Para isso, existem indicadores de efetividade como o QALY (Quality Adjusted Life Years) ou o YLD (Years Lived with Disability), que medem o número de anos vividos com qualidade ou com deficiência, ou ainda, simplesmente, o número de anos de vida ganhos. Indicadores desse tipo servem principalmente para que gestores, públicos e privados, possam definir quais medidas de rastreamento coletivo adotar em seus locais de atuação.

Suponha, por exemplo, que a custo-efetividade da mamografia para o câncer de mama em mulheres acima de 50 anos, medida pelo montante gasto em dinheiro por cada ano de vida salvo, mostrou-se cerca de duas vezes menor do que para mulheres rastreadas entre 40 e 49 anos. Isso pode se dever ao fato de a mamografia mais precoce detectar mais falso-positivos ou verdadeiro-positivos sem significado clínico (sobrediagnóstico). O custo desses efeitos indesejados, somado ao fato da prevalência do câncer de mama ser menor entre mulheres de 40 a 49 anos, explicaria o porquê da sua custo-efetividade menos atraente nesta faixa etária.

Apesar de análises de custo-efetividade não fazerem parte, diretamente, da prática médica clínica, elas estão cada vez mais presentes nas diretrizes e protocolos de apoio ao trabalho médico e sistemas de gestão em saúde. Para muitas recomendações de rastreamento, passaram-se a adotar análises financeiras, quando disponíveis, visando a robustecer as conclusões das revisões sistemáticas. É, no mínimo, intuitivo perceber que o sucesso de um programa de rastreamento médico coletivo ou individual, sustentável ao longo do tempo, depende também da sua viabilidade financeira, tanto no setor público quanto privado da saúde.

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Decisão compartilhada, o último desafio do rastreamento médico

Mudando a cultura enraizada do “quanto mais exames, melhor”

“Eu só vim buscar os pedidos dos exames preventivos. Pode pedir tudo, doutor, o convênio paga!” Esta frase ilustra uma realidade comum no âmbito médico. Trata-se, certamente, do início de um número considerável de consultas de medicina geral e atenção primária. Ela embute em si algumas crenças e costumes já bastante arraigados que desafiam a prática da medicina nos tempos atuais: primeiro, a grande importância que se dá, hoje, à prevenção em saúde, o que é positivo; segundo, a fascinação pela tecnologia e a total confiança nos exames laboratoriais e de imagem, mais até, talvez, do que na opinião do(a) próprio(a) médico(a); terceiro, a percepção subjetiva de que quanto mais exames fizer, melhor; por último, a despreocupação com o custo financeiro dos procedimentos.

O check-up parece ocupar, de fato, um lugar de relevo na prática médica atual (e no imaginário popular), e a tendência provável é que esse espaço cresça ainda mais no futuro. A simples perspectiva dessa evolução deve implicar para os profissionais de saúde em novas responsabilidades, desafios e oportunidades.

Pesando riscos e benefícios do rastreamento

Hoje, viver mais e melhor é objetivo não só de doentes, mas também das pessoas virtualmente saudáveis. E o rastreamento pode ajudar a alcançá-lo, desde que seja feito dentro dos limites que lhe são inerentes, ou seja, dosando os conhecimentos científicos e as novas técnicas de diagnóstico e tratamento com as características epidemiológicas e culturais de onde é praticado, com o discernimento clínico do profissional da saúde envolvido e, importante, com a individualidade de cada paciente.

Nas últimas décadas, floresceram várias novidades em tecnologia da saúde. As suas vantagens em relação às mais antigas possibilitaram diagnósticos mais rápidos e precisos, tratamentos mais abrangentes e curativos, e a geração de conhecimento com base em evidências científicas cada vez mais sólidas. Pacientes de check-up também ganharam muito com isso.

Por outro lado, afloraram novos problemas antes inexistentes ou que, pelo menos, não eram tão percebidos, como os vieses de duração e de tempo ganho, a sobretestagem, o sobrediagnóstico e suas consequências práticas para os pacientes: exames e tratamentos desnecessários, inadequados, com possíveis complicações e até sequelas. Além do desperdício de recursos humanos, materiais e financeiros.

A decisão compartilhada e o rastreamento médico baseado em evidência

A evolução tecnológica e a sua interface com a área de negócio da saúde vão continuar seus caminhos na tentativa de suprir as demandas sociais. E o complexo sistema de saúde, com as inter-relações entre governantes, empresários, legisladores, pesquisadores, gestores, fabricantes, distribuidores, vendedores, prestadores de serviços e cidadãos, vai seguir adaptando-se e modernizando-se. Mantendo o foco principal sempre no bem-estar das pessoas (cidadãos, clientes, pacientes, usuários etc.), em torno de quem orbita todo o sistema de saúde, as melhores soluções de rastreamento médico tendem a passar, também, pelo compartilhamento de decisões entre profissionais da saúde bem treinados e pacientes bem informados.

Da abertura ao diálogo e da participação ativa de todos os atores sociais, apoiados na ciência e na experiência profissional, é possível identificar, previamente, a visão das partes sobre:

  1. o que é preciso rastrear;
  2. qual o melhor meio de fazê-lo;
  3. em que um diagnóstico pré-clínico pode implicar;
  4. o que se espera conseguir com o rastreamento;
  5. quais riscos se corre ao rastrear ou não; e
  6. como superar dificuldades, como restrições de financiamento ou deficiências estruturais.

Com essa nova postura de compartilhamento decisório, no futuro, talvez as consultas passem a começar de modo diferente: “Vamos conversar sobre suas expectativas e atitudes de saúde, seus exames preventivos e decidir juntos o que fazer?” E o rastreamento médico se torne um instrumento mais efetivo, útil e sustentável, em favor da saúde de todos.

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Bibliografia consultada

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