O papel transformador do professor da saúde no SUS: entre hooks e Freire
“Ensinar é um ato de amor”, escreveu Paulo Freire. Bell Hooks ampliou esse pensamento ao dizer que ensinar também é…
No mês da Consciência Negra, é impossível falar de saúde sem falar de raça. No Brasil, cor da pele e racismo não são apenas temas “sociais”: são determinantes centrais do adoecimento, do sofrimento psíquico e até de quem vive ou morre.
Para quem está no consultório, na enfermaria ou na unidade básica de saúde, a pergunta é direta: sua consulta médica tem cor? Ou, dito de outro modo: o modo como você acolhe, escuta, investiga e trata muda, ainda que de forma sutil, quando o paciente é negro?
Este texto convida médicos e médicas a encarar o racismo como questão clínica, não apenas ética ou política. E a usar o mês da Consciência Negra como um marco para revisitar práticas e pactuar mudanças na rotina do cuidado.
O Brasil tem uma política específica para enfrentar o racismo na saúde: a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), instituída em 2009. Ela parte de um reconhecimento explícito: racismo, desigualdades étnico-raciais e racismo institucional são determinantes sociais das condições de saúde, e precisam ser enfrentados se quisermos falar seriamente em equidade no SUS.
Os números confirmam o que a experiência clínica já mostra:
Esses dados não se explicam por “genética” ou “estilo de vida individual”. Eles apontam para um padrão estrutural: pessoas negras adoecem e morrem mais porque vivem sob maior carga de violência, pobreza e discriminação, inclusive dentro do sistema de saúde.
O conceito de trauma racial ajuda a nomear algo que muitos pacientes negros descrevem, mas que nem sempre é reconhecido como problema de saúde: o efeito cumulativo de episódios de humilhação, suspeita, violência verbal, física ou simbólica, que se repetem ao longo da vida.
Esse trauma não é apenas “emocional”. A exposição crônica ao racismo funciona como um tipo de estresse tóxico: ativa de forma prolongada os sistemas de resposta ao estresse, altera sono, apetite, níveis de cortisol e, ao longo do tempo, aumenta o risco de doenças cardiovasculares, metabólicas e transtornos mentais.
Na prática clínica, isso pode aparecer como:
Se não perguntamos sobre isso, fica parecendo que são apenas “questões individuais” ou “problemas da personalidade”. Mas o corpo está reagindo a um ambiente sistematicamente hostil.
O artigo “A sua consulta tem cor?” publicado na Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade propõe uma reflexão dura, mas necessária: o racismo atravessa as relações clínicas mesmo quando não é nomeado, e muitas vezes justamente quando não é nomeado.
Nada disso depende de “má intenção”. São padrões aprendidos numa sociedade racista, que a formação médica raramente questiona, e que acabam gerando práticas desiguais.
Não basta “não ser racista”: na clínica, é preciso atuar de forma ativa para reduzir danos e desigualdades. Alguns movimentos concretos:
Incluir o racismo como elemento na linha de cuidado (por exemplo, ao discutir gatilhos de crises ansiosas ou depressivas) é uma forma de tirar o problema do indivíduo e colocá-lo no contexto.
Médicos e estudantes negros também são expostos diariamente a racismo nas faculdades, nos hospitais e nas relações com pacientes e equipes. Relatos de solidão, invisibilidade, questionamento de competência e microagressões são frequentes na literatura sobre formação médica.
Para essas pessoas, o mês da Consciência Negra não é apenas um convite à reflexão, mas também um lembrete de autocuidado:
Para colegas não negros, a responsabilidade é dividir esse trabalho: ler, estudar, se posicionar, propor mudanças institucionais e apoiar ativamente os colegas negros.
A PNSIPN não é um documento abstrato; ela traz diretrizes que podem orientar a prática de qualquer médico no SUS, em diferentes níveis de atenção. Entre suas marcas estão: reconhecer o racismo como determinante de saúde, incorporar a temática na formação e educação permanente em saúde e produzir conhecimento sobre racismo e saúde da população negra.
Como médicos, também temos papel de advocacy: participar de conselhos, sociedades de especialidade e espaços de decisão levando a pauta da equidade racial.
Talvez você não consiga, hoje, mudar a estrutura da sua instituição. Mas há perguntas que você pode se fazer já na próxima consulta:
No mês da Consciência Negra, o convite é sair do abstrato. Transformar “consciência” em prática. Reorganizar a consulta, o prontuário, a educação permanente e os critérios de decisão com a pergunta incômoda: A minha consulta tem cor? Se a resposta for “sim”, o próximo passo não é culpa ou paralisia, mas compromisso: reconhecer, estudar, escutar e mudar. É nisso que uma prática clínica antirracista começa e é disso que a população negra precisa, em novembro e o ano inteiro.

Gabriel Henriques Amorim é médico (CRM-SP 272307), especialista em Educação na Saúde pela USP e residente de Medicina de Família e Comunidade no Hospital das Clínicas da FMUSP. No blog da Manole, compartilha conteúdos práticos, baseados em evidências, voltados para o dia a dia do cuidado em saúde.
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