Transtornos do uso de álcool: diagnóstico e tratamento

Introdução

  • O abuso de álcool constitui grave problema de saúde pública por ser responsável por grande número de comorbidades e estar associado a episódios de acidentes e violência. Independentemente da licitude ou associação a diferentes contextos socioculturais, o álcool é uma substância psicoativa e pode levar à dependência em cerca de 30% dos casos.
  • De acordo com o II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD) – 2012 UNIFESP:
    • 54% dos adultos entrevistados consumiam álcool ao menos 1 vez na semana.
    • 6,8% dos entrevistados eram dependentes de álcool (10,5% homens e 3,6% mulheres).
  • Para avaliar o risco de desenvolver dependência ao uso de álcool, é importante investigar o padrão de uso.
  • CID-10 (mais usada no Brasil):
    • F10 – Transtornos mentais e comportamentais decorrentes do uso de álcool.
    • Divide entre uso experimental, recreativo, frequente, abusivo ou nocivo (padrão de uso que causa prejuízo físico ou mental à saúde, que tenha causado um dano real à saúde física ou mental do usuário) e dependência (ver adiante).
  • DSM 5: une abuso e dependência em uma única categoria: transtornos do uso de álcool.

Quadro 1 Padrões de consumo de álcool e diagnóstico de transtorno por uso de álcool, de acordo com o DSM-5.

Leve: 2 ou 3 sintomas. Moderado: 4 ou 5 sintomas. Grave: 6 ou mais sintomas.

Fonte: adaptado de American Psychiatric Association, 2014.

  • História:
    • Questionar sobre o hábito de consumo (frequência, quantidade, teor alcoólico da bebida consumida) CAGE e AUDIT (ver adiante).

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Diagnóstico

Exame físico e diagnóstico

  • Avaliar a presença de sinais de intoxicação aguda e síndrome da abstinência alcoólica (ver CIWA-Ar adiante).
  • Sinais de uso crônico: rubor, edema facial e palpebral, eritrose palmar, incoordenação motora e desequilíbrio, tremor fino de extremidades.
  • Antes de iniciar qualquer tratamento específico, avaliar a presença de condições associadas agudas e crônicas, como desidratação, hematoma subdural, encefalopatia de Wernicke e psicose de Korsakoff, Mallory-Weiss, gastrite, desnutrição (deficiência de tiamina), cirrose, hepatite alcoólica, doença renal crônica, outras comorbidades psiquiátricas, incluindo ideação suicida etc.

Exames laboratoriais

  • Úteis para auxiliar na avaliação das condições associadas citadas anteriormente:
    • Hemograma
    • Glicemia.
    • Eletrólitos (Na, K, Mg).
    • Enzimas hepáticas.
    • Função renal.
  • Rastreamento toxicológico urinário, apesar de indisponível na maioria dos locais, poderia ajudar na avaliação da presença de outras substâncias psicoativas que podem estar interferindo na apresentação clínica.
  • Sorologia para hepatites virais também deve ser pesquisada de acordo com a história clínica.

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Tratamento

Tratamento não farmacológico

  • Entrevista motivacional, terapia cognitivo-comportamental, terapia breve, grupos de ajuda mútua (AA 12 passos).
  • Casos graves podem necessitar de tratamento em centros especializados como os CAPS-AD.

Tratamento farmacológico

  • Naltrexona: 50 mg/dia, podendo ser aumentado para 100 mg/dia após 1 semana de acordo com tolerância – 1ª linha. Pode ser iniciado em pacientes que ainda estão bebendo. Evitar em pacientes com disfunção hepática ou hepatite. Preferir outra alternativa em pacientes que fazem uso de opioides por maior risco de overdose. Tem um NNT para evitar o retorno ao uso de álcool de 18.
  • Acamprosato: 666 mg, 3 x/dia (apresentação, comprimidos de 333 mg) – 1ª linha, alternativa aos pacientes com contraindicação ao uso de naltrexona. Há necessidade de ajuste de dose com disfunção renal, sendo a dose de 333 mg 3x/ dia em pacientes com clearance entre 30 e 50. Contraindicado em pacientes com clearance menor que 30. Paciente tem de estar abstêmio para começar o tratamento. Tem um NNT para evitar o retorno ao uso de álcool de 11.
  • Dissulfiram: 125 a 500 mg, 1 x/dia sob supervisão (apresentações de 250 mg e 500 mg).
  • Topiramato: pode ser usado como 2ª opção – iniciar com 25 mg/dia e titular a dose até 300 mg/dia referência.
  • Gabapentina: iniciar com 300 mg 1 x/dia e titular dose a cada 48 horas com dose-alvo de 600 mg 3 x/dia de referência.
  • A combinação de tratamento farmacológico associada ao não farmacológico é superior a cada uma isoladamente.

Complicações

  • Delirium tremens.
  • Encefalopatia de Wernicke.
  • Psicose de Korsakoff (demência).
  • Polineuropatia alcoólica.
  • Miopatia alcoólica.
  • Cirrose.
  • Hepatite alcoólica.

CAGE (ferramenta para triagem)

  • Questionar sobre o hábito de consumo (p. ex., frequência, quantidade, teor alcoólico da bebida consumida).
  • CAGE (Acrônimo para triar uso nocivo de álcool: “Cut down”, “Annoyed”, “Guilty”, “Eye opener”):
    • Você já pensou em largar a bebida?
    • Ficou aborrecido quando outras pessoas criticaram o seu hábito de beber?
    • Sentiu-se mal ou culpado pelo fato de beber?
    • Bebeu pela manhã para ficar mais calmo ou se livrar de uma ressaca (abrir os olhos).

AUDIT (ferramenta diagnóstica)

  • Ferramenta que auxilia no diagnóstico da dependência e abuso do álcool, conhecida pelas iniciais de seu nome original em inglês: AUDIT (Alcohol Use Disorders Identification Test).
  • Há a possibilidade de realizar o questionário adaptado AUDIT-C para situações com menor tempo disponível, com boa sensibilidade e especificidade.

Figura 1 Formulário AUDIT-C.

Quadro 2 Teste de identificação de problemas relacionados ao uso de álcoola (AUDITb).

a A pontuação do teste AUDIT se baseia na soma simples dos valores de cada resposta escolhida. Um escore ≥ 8 pode indicar uso prejudicial do álcool.

b O AUDIT foi desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde e adaptado para o português por NUTE-UFSC (2016).

CIWA-Ar (ferramenta diagnóstica)

  • Clinical Institute Withdrawal Assessment for Alcohol–Revised avalia a intensidade e a gravidade dos sintomas de abstinência e pode ser útil como referência para emprego da terapia farmacológica.
  • http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462000000200006

Dependência

  • Três ou mais dos seguintes critérios presentes em algum momento dos últimos 12 meses:
    • 1. Forte desejo ou senso de compulsão para consumir a substância.
    • 2. Dificuldades em controlar o comportamento de consumir a substância.
    • 3. Estado de abstinência fisiológica, quando o uso da substância cessou ou foi reduzido ou o uso da mesma substância com a intenção de aliviar ou evitar sintomas de abstinência.
    • 4. Evidência de tolerância.
    • 5. Abandono progressivo de prazeres e interesses alternativos, em favor do uso da substância psicoativa, aumento da quantidade de tempo necessário para obter ou ingerir a substância ou para se recuperar de seus efeitos.
    • 6. Persistência no uso da substância a despeito de evidência clara de consequências manifestamente nocivas.

Figura 2 Instrumentos que auxiliam na triagem e no diagnóstico de transtornos do uso de álcool.

  • Dados interessantes do Vigitel – Ministério da Saúde, 2020, na Tabela 1.

Tabela 1 Variação anual média (e IC 95%) de adultos que, nos últimos 30 dias, consumiram quatro ou mais doses (mulher) ou cinco ou mais doses (homem) de bebida alcoólica em uma mesma ocasião, segundo características sociodemográficas. População adulta (≥ 18 anos) das capitais dos 26 estados brasileiros e do Distrito Federal.

Nota: as estimativas para a evolução de alguns indicadores poderão apresentar pequenas variações com relação a estimativas divulgadas em relatórios anteriores do Vigitel, em função de aperfeiçoamentos metodológicos quanto a fatores de ponderação e imputação de dados faltantes.

£ Correspondente ao coeficiente da regressão linear do valor do indicador sobre o ano do levantamento.

PP: pontos percentuais; IC 95%: intervalo de confiança de 95%; n/s: coeficiente não significativo.

Fonte: Vigitel, 2020.

Figura 3 Padrão de uso que causa prejuízo físico ou mental à saúde, que tenha causado dano real à saúde física ou mental do usuário e dependência. 4 ou mais doses para mulheres e 5 ou mais doses para homens, em uma única ocasião.

H: homens; M: mulheres.

Tabela 2 Comparação de doses de álcool segundo a OMS, SENAD e o NIAAA dos EUA.

OMS: Organização Mundial da Saúde; SENAD: Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas do Brasil; NIAAA: National Institute on Alchohol Abuse and Alcoholism.

Tabela 3 Dose-limite semanal para homens e mulheres.

* Recomendação do NIAAA (ARCR, 2018).

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Referências

  1. American Psychiatric Association. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 5. ed. Porto Alegre: Artmed; 2014.
  2. Bradley KA, DeBenedetti AF, Volk RJ, Williams EC, Frank D, Kivlahan DR. AUDIT-C as a brief screen for alcohol misuse in primary care. Alcohol Clin Exp Res. 2007;31(7):1208-17.
  3. Brasil. Ministério da Saúde. Vigitel Brasil 2006-2020. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2022. https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/publicacoes-svs/vigitel/vigitel-brasil-2006-2020-e-tabagismo-e-consumo-abusivo-de-alcool.pdf
  4. Digiusto E, Shakeshaft A, Ritter A, O’Brien S, Mattick RP; NEPOD Research Group. Serious adverse events in the Australian National Evaluation of Pharmacotherapies for Opioid Dependence (NEPOD). Addiction. 2004;99(4):450-60.
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  6. Galduróz JCF, Caetano R. Epidemiology of alcohol use in Brazil. Rev Bras Psiquiatr. 2004;26(1):3-6.
  7. Johnson BA, Ait-Daoud N, Akhtar FZ, Ma JZ. Oral topiramate reduces the consequences of drinking and improves the quality of life of alcohol-dependent individuals: a randomized controlled trial. Arch Gen Psychiatry. 2004;61(9):905-12.
  8. Laranjeira R, Madruga CS (coords.). II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas – LENAD; 2012. https://inpad.org.br/wp-content/uploads/2014/03/Lenad-II-Relatório.pdf.
  9. Laranjeira R, Nicastri S, Jerônimo C, Marques AC, Gigliotti A, Campana A, et al. Consenso sobre a Síndrome de Abstinência do Álcool (SAA) e o seu tratamento. Rev Bras Psiquiatr 2000;22(2):62-71.
  10. Mason BJ, Quello S, Goodell V, Shadan F, Kyle M, Begovic A. Gabapentin treatment for alcohol dependence: a randomized clinical trial. JAMA Intern Med. 2014;174(1):70-7.
  11. Reus VI, Fochtmann LJ, Bukstein O, Eyler AE, Hilty DM, Horvitz-Lennon M, et al. The American Psychiatric Association Practice Guideline for the Pharmacological Treatment of Patients With Alcohol Use Disorder. Am J Psychiatry. 2018;175(1):86-90.
  12. Saunders JB, Aasland OG, Babor TF, de la Fuente JR, Grant M. Development of the alcohol use disorders identification test (AUDIT): WHO collaborative project on early detection of persons with harmful alcohol consumption‐II. Addiction. 1993;88(6):791-804.
  13. Sullivan JT, Sykora K, Schneiderman J, Naranjo CA, Sellers EM. Assessment of alcohol withdrawal: the revised clinical institute withdrawal assessment for alcohol scale (CIWA‐Ar). Br J Addict. 1989;84(11):1353-7.
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