Hiperglicemias: fisiopatologia e opções de tratamento no pronto-socorro!

Autores: Rodrigo Antonio Brandão Neto; Igor Veiga Silvério e Luiz Rodolfo Egydio de Cerqueira César

Introdução:

Compreenda a fisiopatologia e as principais opções de tratamento para Cetoacidose Diabética (CAD) e Estado Hiperosmolar Hiperglicêmico (EHH), as duas principais complicações relacionadas a Hiperglicemias. Este texto foi organizado a partir do capítulo “Hiperglicemias”, do livro Medicina de Emergência: abordagem prática – 18ª edição, sendo apenas um excerto do conteúdo encontrado no livro, para informações mais completas e aprofundadas, confira a obra completa. O artigo original foi escrito pelos doutores Rodrigo Antonio Brandão Neto; Igor Veiga Silvério e Luiz Rodolfo Egydio de Cerqueira César; nenhuma informação do texto foi alterada nesta versão, sendo feita apenas algumas reformulações de estilo para facilitar a transposição das informações.

 

Definições:

A CAD e EHH são as duas complicações agudas relacionadas a hiperglicemias com mais ocorrências no pronto-socorro, representando de 4 a 9% das internações hospitalares em pacientes com Diabetes Mellitus; sendo 1% dessas internações relacionadas ao EHH, e os outros casos associados à CAD. Atualmente, em centros de excelência no tratamento de CAD, a mortalidade é inferior a 1%, podendo, contudo, ser maior do que 5% em indivíduos idosos ou com doenças graves. Quando evolui para edema cerebral, a mortalidade chega a atingir 30% ou mais dos pacientes. No EHH temos uma importante hiperglicemia com desidratação e aumento da osmolaridade; já na CAD, além da alteração do metabolismo temos também alteração do metabolismo lipídico com produção de cetoácidos e consumo de bicarbonato. 

 

A CAD é definida pela tríade:

 

O EHH, por sua vez, é definido por: 

 

Etiologia e Fisiopatologia:

A fisiopatologia da CAD é mais conhecida que a da EHH. O paciente com Diabetes Mellitus, devido à diminuição da própria insulina ou resistência à sua ação, tem dificuldade de transportar a glicose para o meio intracelular, apresentando assim uma glicopenia intracelular. O equilíbrio dos meios acaba acontecendo, mas com um nível de glicemia muito mais elevado do que o considerado normal, estabelecendo-se assim uma nova homeostase glicêmica. A CAD é precipitada por uma ausência absoluta ou relativa da insulina. Assim, o quadro é mais esperado em pacientes com DM do tipo 1, mas tem sido cada vez mais frequente em pacientes com DM tipo 2. 

A CAD pode ser precipitada por infecção ou outros fatores estressores. Neste caso, ocorre uma resistência à ação insulínica extrema causada pelos hormônios contrarreguladores, como o hormônio do crescimento, cortisol e catecolaminas, que levam, por sua vez, ao aumento de glucagon e lipólise. A indisponibilidade da glicose para servir de substrato para produção de energia intracelular e a alteração da relação insulina/glucagon levam a um aumento na gliconeogênese (produção de glicose através de outros substratos como gorduras e proteínas) e glicogenólise (quebra de glicogênio em glicose). Desta forma, o paciente apresenta-se com glicemias progressivamente maiores, ocorrendo assim o processo de diurese osmótica levando a desidratação e aumento da osmolaridade. 

A acidose se soma ao quadro quando há alteração do metabolismo dos lipídios. Isso ocorre quando a ausência relativa de insulina for absoluta ou quase absoluta, pois mesmo pequenas quantidades de insulina são capazes de suprimir toda a produção de glucagon por efeito parácrino nas ilhotas pancreáticas. 

Nestas circunstâncias, com o aumento do glucagon, diminui a produção de uma enzima denominada malonil coenzima A, que tem a função de inibir a produção da carnitina-palmitil-transferase. Com a diminuição da malonil coenzima A, ocorre o aumento da já citada carnitina-palmitil-transferase, que faz o transporte de ácidos graxos para as mitocôndrias hepáticas. Desta forma, há produção de energia usando como substrato os lípides. O problema é que esse processo produz ácido acetoacético, ácido beta-hidróxibutírico e acetona, estabelecendo o quadro de cetoacidose. Há consumo da reserva alcalina e diminuição posterior do pH sanguíneo. Ocorre também uma grande produção de lípides e triglicérides, podendo inclusive ser desencadeadas complicações da hipertrigliceridemia como a pancreatite. São frequentes discretas elevações de amilase e lipase na CAD. Outras alterações encontradas incluem:

No EHH, ao contrário da CAD, a deficiência de insulina é apenas relativa, de forma que não ocorre uma elevação tão importante do glucagon, e assim a alteração do metabolismo lipídico não ocorre com produção de cetoácidos. Entretanto, esses pacientes se apresentam com desidratação muito maior. A diurese osmótica pela hiperglicemia leva à perda importante de eletrólitos e perda ainda maior de água livre, de forma que a osmolaridade aumenta significativamente. 

Entre os fatores precipitantes da CAD e EHH se destacam os processos infecciosos, sendo responsáveis por 30-50% dos casos de CAD e 30-60% dos casos de EHH. Os focos infecciosos mais frequentes incluem pneumonia, infecção urinária, sepse de origem determinada, infecções cutâneas e gastroenterites. Em 20-30% dos pacientes com DM tipo 1 a CAD ocorre por descontinuação da medicação, frequentemente associada a problemas psiquiátricos. Cada vez mais tem aumentado a incidência de pacientes que apresentam como primeira manifestação do diabetes a cetoacidose diabética, mesmo naqueles que depois evoluem clinicamente como diabéticos do tipo 2. Assim, a CAD pode ser a primeira manifestação de DM em cerca de 20% dos pacientes. As causas cardiovasculares e cerebrovasculares, como infarto agudo do miocárdio e acidente vascular cerebral, são responsáveis por cerca de até 5% das CAD, sendo causa proeminente desta descompensação em grupos etários acima dos 40 anos de idade. As causas cardio e cerebrovasculares representam entre 5 e 8% dos casos de EHH. 

 

Opções de Tratamento:

A CAD era uma patologia invariavelmente fatal até 1926, quando pela primeira vez se aplicou insulina regular para o seu tratamento. Hoje, a mortalidade em centros de referência norte-americanos é menor que 3%, sendo grande parte dela atribuída aos fatores precipitantes como infecções e eventos cardiovasculares. Os quadros com tal descompensação diabética podem ser revertidos em algumas horas, na maioria das vezes sem a necessidade de internação. O esteio do tratamento é a hidratação, insulinoterapia e correção de fatores precipitantes. Discutiremos a seguir o manejo da CAD e do EHH dividido por tópicos.

 

Hidratação 

A hidratação é fundamental no manejo inicial das emergências hiperglicêmicas e, isoladamente, pode diminuir em 12% os níveis glicêmicos. A hidratação a princípio tem como alvo inicial a estabilização hemodinâmica. Iniciamos com 1.000-1.500 mL de solução de NaCl a 0,9% na primeira hora. Se o paciente permanece hipotenso, pode ser necessário repetir ainda na primeira hora (no EHH, em particular, podem ser necessários vários litros). 

Na segunda fase da hidratação mantemos 250-500 mL (4 mL/kg) por hora. Em pacientes com Na corrigido (<135 mEq/L) mantemos solução salina a 0,9%. Caso a natremia seja normal ou aumentada deve-se utilizar salina a 0,45%. Quando a glicemia chegar a 250-300 mg/dL a hidratação continua, mas associando glicose a 5-10% com a solução salina. A diluição pode ser feita usando-se 1 litro de solução glicosada acrescido de 20 mL de solução de NaCl 20%. A velocidade de infusão continua de 250-500 mL/hora. 

Um estudo de 2020 comparou o uso de soluções cristaloides balanceadas como o Ringer-lactato e o Plasma-Lyte com a salina fisiológica e encontrou que o tempo de resolução da CAD foi menor (13,0 horas vs. 16,9 horas). Desta forma, o uso de soluções balanceadas pode ser um tratamento melhor para pacientes com CAD comparado a salina fisiológica, embora a salina fisiológica continue sendo recomendada pela maioria dos autores.

 

Insulinoterapia 

A insulinoterapia é realizada concomitantemente com a hidratação endovenosa, exceto quando o paciente apresenta hipocalemia (com K < 3,3 mEq/L) e hipotensão arterial, caso em que se deve aguardar a hidratação e a reposição de potássio para iniciar o uso da insulina. Até a década de 1970 eram utilizadas grandes doses de insulina para realizar a compensação do quadro de cetoacidose diabética. Alguns trabalhos dessa década demonstram, no entanto, que o uso de doses menores de insulina foi associado à reversão do quadro com a mesma rapidez, com menor número de complicações. O trabalho de Alberti em 1973, por exemplo, usou insulina regular intramuscular (IM) em dose inicial de 16 unidades e depois de 10 unidades por hora, esquema associado ao alto índice de sucesso na terapêutica. Outro trabalho da mesma década comparou dois esquemas diferentes para o tratamento da cetoacidose diabética, um deles usando altas doses de insulina e outro com doses menores. Comparando-se os dois grupos verificou-se que em ambos se conseguiu a reversão do quadro de cetoacidose diabética no mesmo período de tempo, com a diferença de que o grupo que utilizou altas doses de insulina precisou de cerca de 200-250 unidades de insulina regular para a compensação do quadro, enquanto o outro grupo precisou de 40-60 unidades de insulina para a compensação do episódio. Ocorreram menos complicações secundárias ao tratamento no grupo quando foram utilizadas doses menores de insulina, principalmente hipoglicemia.

Em relação à insulinoterapia, recomenda-se que a insulina seja iniciada concomitante à hidratação, exceto se K < 3,3 mEq/L. Neste caso deve-se repor 25 mEq de potássio antes de iniciar a insulinoterapia (aproximadamente 1 ampola de 10 mL de solução de KCl 19,1%). Geralmente utiliza-se bomba de infusão contínua endovenosa, com dose inicial de 0,1 U/kg de insulina em bolus e depois inicia-se a infusão da bomba em 0,1 U/kg/hora. Outra opção é a infusão contínua inicial de 0,14 U/ kg/hora sem bolus inicial. A solução de insulina para infusão contínua pode ser preparada com 50 unidades de insulina em 250 mL de solução fisiológica; assim, 5 mL correspondem a 1 U de insulina. O ideal no preparo desta solução é que se desprezem 50 mL da solução, pois a insulina é adsorvida no plástico. Alternativamente, pode-se utilizar insulina regular IM ou subcutânea (SC), usando dose em bolus inicial de 0,4 unidades/kg, metade dessa dose inicial em bolus EV e metade via IM ou SC e depois mantendo dose de 0,1 unidade/ kg/hora IM ou SC, observando a taxa de queda da glicemia, que deve ser mantida entre 50 a 70 mg/ dL/hora. Um estudo mostrou que a adição do bolus de insulina à bomba de infusão aumenta as complicações nesses pacientes e desse modo alguns autores preferem omitir esse bolus inicial.

A glicemia capilar é mensurada de 1/1 hora. Espera-se uma queda da glicemia de 50-70 mg/dL/hora. Caso a glicemia caia em níveis menores que 50 mg/dL é recomendável dobrar a taxa de infusão; se ocorrer redução maior que 70 mg/dL, recomenda-se diminuir a taxa de infusão pela metade.

A bomba de infusão pode ser desligada quando pelo menos dois dos três critérios estão presentes:

Para desligar a bomba de infusão contínua deve-se esperar pelo menos 1 hora da ação da primeira dose de insulina regular SC, e posteriormente prosseguir com insulina SC conforme glicemia capilar a cada 4/4 horas. Idealmente, o melhor momento para fazer essa transição é logo após uma refeição. 

Pode-se usar a dose prévia de insulina caso o paciente já utilize insulinoterapia antes do episódio de CAD. Nesse caso, recomenda-se dividir a dose em esquema basal-bolus de forma proporcional, ou seja, 50% da dose para basal e 50% da dose para bolus. Se for a primo-descompensação, o cálculo da dose diária inicial de insulina pode ser feito de 2 formas: 0,4-0,8 U/kg de peso ou taxa recente de infusão IV em U/h (média das últimas 4 a 6 horas de bom controle glicêmico) x 24, dividindo 60 a 40% em dose basal/bolus.

Um estudo mostrou que alternativamente ao uso da bomba de insulina podemos realizar o tratamento com um protocolo de insulina rápida subcutânea, denominado SQuID PROTOCOL. No estudo original, esse protocolo foi associado a um tempo 3 horas menor para resolução da CAD. Foram excluídos do estudo: gestantes, pacientes ≤ 18 anos, pacientes com infecção concomitante, pacientes com comorbidades (doença renal crônica avançada, insuficiência cardíaca, uso de imunossupressores), alteração do nível de consciência, necessidade/programação cirúrgica, preocupação do avaliador para infarto agudo do miocárdio, pacientes entendidos como “muito graves para vigilância no ‘andar’ cuidado por hospitalistas’’, cetoacidose grave.

 

Reposição de potássio (K):

Em relação à reposição de K, caso os níveis de K sejam menores que 3,3 mEq/L, deve-se repor 25 mEq de potássio em 1 L de solução de NaCl 0,9% e repetir a dosagem de K. Só se inicia a insulinoterapia após níveis de K > 3,3 mEq/L.

 

Reposição de bicarbonato:

A reposição de bicarbonato de sódio não demonstrou benefício em estudos e só é indicada em pacientes com pH < 6,9 com reposição de 100 mEq EV de bicarbonato em 2 horas com coleta de gasometria após 1-2 horas (100 mL de solução de bicarbonato 8,4%). Uma metanálise de estudos sobre reposição de bicarbonato na CAD não demonstrou benefícios com essa conduta em paciente com pH inicial entre 6,90 e 7,14, mas os trabalhos analisados incluíram poucos pacientes com pH menor que 7,0. Anteriormente, a recomendação era repor bicarbonato se o pH arterial < 7,00, mas outros estudos não demonstraram benefício e o ponto de corte para reposição hoje é de pH ≤ 6,9.

 

Reposição de fósforo:

A reposição de fósforo só é indicada em pacientes com as seguintes condições:

Quando indicada, a reposição é realizada com 25 mEq de fosfato de potássio, que repõe K além de fósforo, substituindo a solução de cloreto de potássio (KCl). Por fim, e não menos importante, deve-se lembrar de sempre procurar e corrigir o fator precipitante da emergência hiperglicêmica.

 

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