Injúria renal aguda (IRA): diagnóstico e tratamento
Emmanuel de Almeida Burdmann, Rodrigo Antonio Brandão Neto

 

Definição

  • A injúria ou lesão renal aguda é uma síndrome em que ocorre diminuição abrupta da filtração glomerular, que se reflete em elevações dos níveis séricos de ureia e creatinina. Pode se acompanhar ou não de diminuição do volume urinário.
  • A definição de injúria renal aguda (IRA) mais utilizada atualmente é a adotada pela diretriz de IRA KDIGO (Kidney Disease: Improving Global Outcomes), publicada em 2012, que discutiremos posteriormente.
  • A lesão ou injúria renal aguda é uma indicação de internação hospitalar e frequentemente necessita de cuidados de terapia intensiva e com altas morbidade e mortalidade.

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Etiologias

Pré-renal

  • A queda da filtração glomerular ocorre por alterações hemodinâmicas que causam isquemia renal.
  • Caracteriza-se por rápida recuperação da filtração glomerular quando a perfusão renal adequada é restaurada.

Renal

  • A queda da filtração glomerular ocorre associada à lesão estrutural dos túbulos e/ou vasos e/ou interstício renal.
  • A etiologia mais comum de injúria renal aguda é a lesão de início recente dos túbulos renais, classicamente denominada necrose tubular aguda (NTA). Apesar do nome, as lesões histológicas podem às vezes ser sutis e detectáveis apenas com nível de microscopia eletrônica. A NTA ocorre após isquemia renal (mais frequente) e/ou exposição a substâncias nefrotóxicas.
  • Pode também ser causada por glomerulonefrites ou vasculites renais agudas ou por inflamação aguda do interstício renal, de caráter infeccioso (pielonefrites) ou inflamatório (nefrites intersticiais agudas).

Obstrutiva

  • A queda da filtração glomerular ocorre associada à obstrução mecânica do fluxo de líquido no nível das vias excretoras (ureteres, bexiga, uretra).

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Necrose tubular aguda

Fatores de risco

  • Desidratação.
  • Hipovolemia.
  • Idade avançada.
  • Doença renal crônica.
  • Doenças crônicas (cardíacas, pulmonares, hepáticas).
  • Diabete melito.
  • Câncer.
  • Anemia.

Exposições associadas à necrose tubular aguda

  • Sepse/infecção.
  • Instabilidade hemodinâmica (hipotensão/choque).
  • Medicamentos nefrotóxicos (mais frequentes a seguir):
  • Bloqueadores do sistema-renina-angiotensina-aldosterona (bloqueadores da enzima de conversão da angiotensina, bloqueadores dos receptores de angiotensina, bloqueadores de renina) na presença de desidratação ou isquemia renal.
  • Grandes cirurgias.
  • Grandes queimaduras.
  • Trauma civil.
  • Pigmentúria:
    • Mioglobina.
    • Hemoglobina.
    • Bilirrubina.
  • Peçonhas animais:
    • Serpentes (Bothrops, Crotalus, Lachesis).
    • Aranha (Loxosceles).
    • Lagarta (Lonomia).

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Diagnóstico

Diretriz Kidney Disease: Improving Global Outcomes

  • A injúria renal aguda (IRA) é diagnosticada por elevações abruptas da creatinina sérica (SCr) ou diminuições sustentadas do volume urinário (VU):
    • Aumento do valor da SCr de ≥ 0,3 mg/dL no intervalo de 48 horas, ou
    • Aumento da SCr de ≥ 1,5 vez em relação à SCr de referência ocorrendo sabida ou presumidamente no intervalo de 7 dias, ou
    • VU < 0,5 mL/kg/h por 6 horas.
  • Nem sempre, há dados sobre creatinina de períodos anteriores a 1 semana, mas, quando se sabe a lesão que ocorreu há menos de 3 meses, trata-se lesão renal subaguda, que pode ser manejada de forma similar à IRA, enquanto não se tem certeza da relação temporal.
  • A IRA é dividida em três estágios crescentes de gravidade por essa definição:
    • Estágio 1: aumento SCr ≥ 0,3 mg/dL ou 1,5-1,9 vez a SCr de referência ou VU < 0,5 mL/kg/h por 6 a 12 horas.
    • Estágio 2: aumento SCr de 2 a 2,9 vezes a SCr de referência ou VU < 0,5 mL/kg/hora por ≥ 12 horas.
    • Estágio 3: aumento da SCr ≥ 4,0 mg/dL ou ≥ 3 vezes a SCr de referência ou VU < 0,3 mL/kg/h por ≥ 24 horas ou anúria ≥ 12 horas.

Tabela 1 Classificação da lesão e injúria renal aguda.

Perda de função: perda completa de função renal por mais que 4 semanas.

ESRD* por mais de 3 meses.

RIFLE: risk, injury, failure, loss, end-stage; AKIN: acute kidney injury network; KDIGO: kidney disease: improving global outcomes; Cr: creatinina; TFG: taxa de filtração glomerular; TSR: terapia de substituição renal; ESRD: end-stage renal disease (doença renal em estágio terminal).

Quadro clínico

  • Sinais e sintomas de gravidade variável, dependendo da intensidade e da duração da queda da filtração glomerular. Podem ocorrer isoladamente ou em associações:
    • Diminuição do volume urinário.
    • Ganho rápido de peso.
    • Hipertensão.
    • Edema.
    • Arritmias cardíacas.
    • Taquipneia.
    • Alterações associadas à uremia:
      • Neurológicas: sonolência, confusão mental, coma.
      • Gastrointestinais: inapetência, náuseas, vômitos.
      • Atrito e derrame pericárdico.
      • Prurido.
      • Sangramentos por alterações plaquetárias.

Laboratório

  • Elevação de creatinina e de ureia, que podem ser as únicas alterações laboratoriais encontradas.
  • Outras anormalidades podem surgir:
    • Alterações de eletrólitos: hiperpotassemia, hiponatremia, hipocalcemia, hiperfosfatemia.
    • Acidose metabólica.
    • Anemia.
  • O exame de urina pode ser normal ou apresentar células epiteliais tubulares livres, cilindros com células epiteliais tubulares e cilindros granulosos com pigmento marrom.

Ultrassonografia renal

  • Tamanho renal, espessura do córtex e ecogenicidade do parênquima normais sugerem que a NTA se instalou em rins previamente saudáveis.
  • Redução do tamanho renal e da espessura cortical e hiperecogenicidade do parênquima renal sugerem que a NTA se instalou em rins com lesão crônica prévia.

Biópsia renal

  • Está indicada quando:
    • Não há evidência de isquemia e/ou exposição a substância nefrotóxica precedendo a injúria renal aguda (IRA) e/ou a etiologia da IRA é obscura.
    • IRA prolongada (mais de 2 semanas sem recuperação da filtração glomerular).
    • Possível etiologia tratável se diagnóstico específico.

Diagnósticos diferenciais mais relevantes para necrose tubular aguda

Injúria renal aguda pré-renal

  • Lesão estrutural renal é mínima ou ausente.
  • Correção da isquemia renal através de reposição de volemia, normalização da pressão arterial e/ou do débito cardíaco induz rápida recuperação da função renal (horas), com queda dos níveis de SCr e normalização do VU.
  • Provas volêmicas em pacientes com suspeita de síndrome hepatorrenal devem ser realizadas com reposição de cristalóides ou albumina em 24 horas, não mais sendo recomendada prova volêmica por 48 horas.

Nefrite intersticial aguda

  • Infiltrado inflamatório no interstício renal.
  • Fenômeno alérgico. Podem ocorrer:
    • Febre, artralgia, erupção cutânea.
    • Eosinofilia, eosinofilúria.
  • Em geral se desenvolve sem a presença de isquemia ou o uso de drogas nefrotóxicas.
  • Secundária a medicamentos, substâncias ou idiopática.
  • Início insidioso, não oligúrica, quadro de injúria renal aguda prolongado (superior a 2 semanas).
  • Sedimento urinário com cilindros leucocitários.
  • Cintilografia renal com gálio (hipocaptação) ou tomografia renal por emissão de pósitrons podem ser positivos.
  • O padrão-ouro para diagnóstico é a biópsia renal.

Glomerulonefrite aguda

  • Lesão glomerular.
  • Quadro clínico:
    • Edema e hipertensão são frequentes.
    • Geralmente oligúrica.
    • Pode haver urina espumosa.
    • Pode haver hematúria macroscópica.
    • Pode haver infecção precedendo o quadro.
  • Sedimento urinário com proteinúria, hematúria, cilindros hemáticos ou lipoides.

Vasculites renais

  • Lesão vascular renal.
  • Quadro clínico sistêmico simultâneo frequente.
  • Laboratório com alterações de marcadores inflamatórios e imunológicos.

Injúria renal aguda obstrutiva

  • Obstrução ao fluxo urinário:
    • Tumores ginecológicos.
    • Tumores de retroperitônio.
    • Tumores urológicos.
    • Outras compressões extrínsecas.
    • Calculose renal.
  • Anúria é rara. Geralmente se alternam períodos de oligúria e de VU “normal”.
  • Ultrassonografia renal com dilatação pielocalicial.

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Tratamento da necrose tubular aguda

  • 1. Monitorar a SCr e o VU com a frequência adequada para a situação.
  • 2. Identificar fator(es) etiológico(s) para NTA e corrigi-lo(s).
  • 3. Tratar a infecção precocemente (identificar/remover foco e iniciar antibioticoterapia).
  • 4. Avaliar e corrigir a hidratação (água) precocemente.
  • 5. Avaliar e corrigir precocemente a volemia (cristaloides isotônicos, albumina ou sangue em situações específicas).
  • 6. Pacientes com lesão renal KDIGO 1, caso encontrado o fator precipitante e seguimento próximo, pode-se considerar seguimento ambulatorial.
  • 7. Otimizar precocemente a pressão arterial e o débito cardíaco (usar drogas se necessário – noradrenalina, vasopressinadobutamina).
  • 8. Evitar ou suspender medicamentos que interferem na hemodinâmica renal, como as drogas que bloqueiam o sistema renina-angiotensina-aldosterona.
  • 9. Adequar os medicamentos de excreção renal para o nível de filtração glomerular.
  • 10. Evitar ou suspender medicamentos nefrotóxicos.
  • 11. Monitorar potássio sérico e evitar hiperpotassemia (dieta, suspensão de medicamentos que interfiram na excreção de potássio, uso de furosemida, uso de resinas trocadoras de potássio).
  • 12. Evitar balanço de fluidos positivo (monitorar peso, usar furosemida).
  • 13. Manter hematócrito adequado.
  • 14. Manter aporte nutricional com relação calórico-proteica associada.
  • 15. Evitar colocação de cateteres pelo risco de infecção.
  • 16. Solicitar acompanhamento nefrológico precoce.
  • 17. Realizar acompanhamento nefrológico a longo prazo pelo risco de desenvolvimento de doença renal crônica.

Indicação para uso de terapia renal substitutiva

  • Hipervolemia associada à insuficiência cardíaca grave que não responde ao tratamento clínico.
  • Hiperpotassemia grave (potássio sérico entre 6,0 e 6,4 mEq/L com alterações no eletrocardiograma ou potássio acima de 6,4 mEq/L, com ou sem alterações no eletrocardiograma).
  • Acidose metabólica grave (pH < 7,1) e sintomática, exceto se acidose rapidamente corrigida por outras medidas.
  • Uremia:
    • Confusão mental, coma.
    • Vômitos incoercíveis.
    • Atrito e derrame pericárdico.
    • Prurido intenso.
    • Sangramentos.
  • Intoxicações exógenas graves por substâncias dialisáveis.

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Prevenção da necrose tubular aguda

  • 1. Identificar pacientes com fatores de risco.
  • 2. Avaliar e corrigir fatores de risco modificáveis:
    • Hidratação: água.
    • Volemia: soluções eletrolíticas isotônicas; sangue e albumina em situações específicas; evitar expansão volêmica com soluções de gelatinas.
  • 3. Avalia, a SCr e o VU com a frequência adequada para a situação.
  • 4. Evitar exposições em pacientes com fatores de risco:
    • Correção da pressão arterial e do débito cardíaco.
      • Usar drogas vasoativas se necessário.
    • Evitar uso de medicamentos nefrotóxicos.
    • Adiar procedimentos até correção de fatores de risco modificáveis.
  • 5. Dopamina e furosemida não devem ser usadas para a prevenção de injúria renal aguda.
  • 6. Usar manobras de prevenção específicas para uso de aminoglicosídeos, vancomicinaanfotericina B, contraste iodado, antirretrovirais, cisplatina.

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Referências

  1. Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO) Acute Kidney Injury Work Group. KDIGO Clinical Practice Guideline for Acute Kidney Injury. Kidney Inter. Suppl. 2012;2:1-138.
  2. Nadim MK, Kellum JA, Forni L, et al. Acute kidney injury in patients with cirrhosis: Acute Disease Quality Initiative (ADQI) and International Club of Ascites (ICA) joint multidisciplinary consensus meeting. J Hepatol 2024; 81:163.
  3. Mehta RL, Cerdá J, Burdmann EA, Tonelli M, García-García G, Jha V, et al. International Society of Nephrology’s 0by25 initiative for acute kidney injury (zero preventable deaths by 2025): a human rights case for nephrology. Lancet. 2015;385(9987):2616-43.
  4. Ostermann M, Bellomo R, Burdmann EA, Doi K, Endre ZH, Goldstein SL, et al.; Conference Participants. Controversies in acute kidney injury: conclusions from a Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO) Conference. Kidney Int. 2020;98(2):294-309.
  5. Ronco C, Bellomo R, Kellum JA. Acute kidney injury. Lancet. 2019;394(10212):1949-64.
  6. Silver SA, Nadim MK, O’Donoghue DJ, Wilson FP, Kellum JA, Mehta RL, et al. Community health care quality standards to prevent acute kidney injury and its consequences. Am J Med. 2020;133(5):552-60.e3.

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