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Metemoglobinemia em Pediatria: diagnóstico e tratamento

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Pediatria
Metemoglobinemia em Pediatria: diagnóstico e tratamento
Por: Gabriela de Toledo Passos Candelaria, Filumena Maria da Silva Gomes, Maria Helena Valente

Introdução

  • A metemoglobinemia ocorre quando a fração heme da hemoglobina é oxidada do estado ferroso para o férrico, levando ao comprometimento no transporte e entrega de oxigênio. Entidade rara nos pacientes pediátricos.
  • Nas condições fisiológicas, 0,5% a 2% da hemoglobina está na forma de metemoglobina. Quando a proporção de metemoglobina excede 10% a 20%, sintomas como cianose, tontura e confusão podem ocorrer.
  • Várias condições são indutores potenciais de metemoglobinemia, são elas: diarreia aguda; consumo de água e alimentos ricos em nitrato; uso de determinados medicamentos, como agentes anestésicos tópicos, nitrato de prata, sulfonamidas, fenacetina e valproato de sódio; ou exposição a corantes de anilina, compostos corantes ou soluções de limpeza.
  • A doença pode ser adquirida por intoxicação com agentes oxidantes ou herdada com uma mutação do CYB5R3, o gene que codifica a metemoglobina redutase ou citocromo B5 redutase 3 responsável pela redução da MetHb para hemoglobina.
  • As principais drogas oxidantes como: dapsona, sulfonamidas, titracaína, cloroquina e benzocaína; as várias substâncias usadas na indústria, como polifenóis, hidrazinas, anilina e nitrobenzeno; agentes oxidantes provavelmente trazidos por alimentos (água de poço, espinafre, fertilizantes e conservantes) são desencadeantes da metemoglobinemia. Alguns dos agentes responsáveis não são tóxicos in vitro, mas tornam-se tóxicos in vivo através da formação de um metabólito oxidante: é o caso dos nitratos reduzidos a nitrito pela flora microbiana intestinal.
  • Hemoglobina (Hb):
    • Proteína tetramérica presente nas hemácias, cuja região central contém moléculas de ferro no estado ferroso (Fe2+) – em 4 grupamentos heme – que se ligam ao oxigênio (O2).
  • Metemoglobina (MetHb):
    • Moléculas de ferro podem ser oxidadas (Fe3+), alterando a estrutura do heme e impedindo a ligação do O2 → Hb impedida de carrear O2.
  • Metemoglobinemia: elevação da concentração sérica de MetHb, com consequente redução na oxigenação tecidual:
    • Estado de “anemia relativa”.
  • Mecanismos endógenos de reversão de MetHb a Hb: NADH citocromo b5 redutase e NADPH metemoglobina redutase → o mecanismo é mais rápido em adultos do que em crianças:
    • Mantêm MetHb em torno de 1%.
    • Sobrecarga dos mecanismos endógenos protetivos → metemoglobinemia.
  • A exposição a drogas oxidantes exógenas e seus metabólitos (como benzocaína e dapsona) pode acelerar a taxa de formação de metemoglobina em até 1.000 vezes, com sobrecarga dos sistemas enzimáticos protetores e aumento agudo dos níveis de metemoglobina.
  • Duas formas: congênita x adquirida:
    • Congênita: tipo I, tipo II e doença da HbM:
      • Tipo I: deficiência da NADH citocromo b5 redutase nas hemácias (forma leve).
      • Tipo II: deficiência da NADH citocromo b5 redutase em todos os tipos celulares (forma grave).
      • Doença da hemoglobina M (HbM): mutações na cadeia de Hb que levam a resistência à redução do íon ferro – autossômica dominante.
    • Adquirida: ausência de componente genético:
      • Contato com agente químico ou medicamentoso que leva à oxidação do ferro da Hb:
        • Formação de MetHb de forma direta, por oxidação da Hb, ou de forma indireta, reduzindo O2 livre a radical livre, que oxida a Hb.
        • Vide Quadro 1.
      • Fatores de risco comuns de exposição em Pediatria: fármacos utilizados para anestesia durante pequenos procedimentos (anestésicos locais, anestésicos tópicos); casos reportados de exposição a nitrato via água contaminada:
        • Maior risco em lactentes menores de 6 meses: reduzida produção de ácido gástrico, elevado número de bactérias redutoras de nitrito e facilidade de oxidação da Hb fetal.
Quadro 1 Agentes oxidantes potencialmente envolvidos na metemoglobinemia. Fonte: adaptado de Fossen Johnson S, 2019.
  • Alimentos que contêm nitratos:
    • Leite e derivados.
    • Folhas (alface, espinafre).
    • Salsão.
    • Abóbora.
    • Alho-poró.
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Diagnóstico

  • A metemoglobinemia deve ser suspeitada quando a cianose não está associada a sinais e sintomas de doença pulmonar e/ou cardíaca; ou em criança cianótica que exibe discrepâncias na pressão parcial de oxigênio no sangue arterial, na saturação de oxigênio no sangue e na avaliação clínica.
  • O aparecimento repentino e inesperado de cianose em uma criança sem doença pulmonar e cardíaca sugere fortemente metemoglobinemia adquirida.
  • Doença tempo sensível para o diagnóstico → quanto maior a porcentagem de MetHb no sangue, maiores os sintomas e riscos.
  • Sinais: cianose que não responde à administração de O2:
    • Cianose pode estar presente com níveis de MetHb a partir de 1,5 g/dL ou 10-20% do total de Hb:
      • Diferentemente da cianose da hipoxia, que aparece a partir de 5 g/dL de Hb reduzida.
    • Portanto, mesmo pacientes assintomáticos podem apresentar cianose digna de nota.
  • Sintomas: a depender dos níveis séricos de MetHb. Decorrentes da hipoxia secundária à incapacidade de transporte de O2 pela Hb:
    • Percentual dos valores dos níveis séricos de MetHb:
      • 2-15%: sintomas raros.
      • 15-30%: cefaleia, fraqueza, fadiga, intolerância para atividade física.
      • 30-50%: tontura, síncope, confusão mental, dispneia.
      • >50%: raro. Risco de arritmias, convulsões, coma e óbito.
      • Pacientes com comorbidades como anemia, doença cardiovascular, doença pulmonar, sepse ou presença de outras espécies anormais de hemoglobina podem apresentar sintomas moderados a graves em níveis muito mais baixos.
      • Pacientes pediátricos com menos de 6 meses apresentam risco aumentado de desenvolver metemoglobinemia em quadros de gastroenterite, desidratação e sepse.
    • Fatores de risco sugestivos de metemoglobinemia quando quadro clínico compatível: ingestão ou exposição de pele e mucosas a agentes oxidantes (Quadro 1).

Confirmação diagnóstica

  • Sangue de aparência amarronzada.
  • Pressão parcial de O2 (PaO2) normal:
    • A PaO2 quantifica moléculas de O2 dissolvidas no sangue, e não as ligadas à Hb.
  • Saturação de O2 (medida de forma habitual) falsamente elevada:
    • Em torno de 85%, conforme aumento dos níveis de MetHb.
  • Nível sérico elevado de MetHb.
  • Atividade enzimática:
    • Forma adquirida: atividade normal da enzima NADH citocromo b5 redutase.
    • Forma congênita: redução da atividade enzimática ou achado da HbH na eletroforese de Hb.

Diagnóstico diferencial

  • Lactentes: cardiopatia congênita com shunt direta-esquerda. Na cardiopatia, a pressão parcial de O2 é baixa, diferente da metemoglobinemia.
  • Crianças maiores: sulfa-hemoglobinemia. Sintomas mais leves, tratamento de suporte.
    • Teste de cianeto de potássio: adição de algumas gotas de cianeto de potássio ao sangue do paciente. A MetHb se liga ao cianeto e forma cianometemoglobina, cuja cor é vermelho-viva. Na sulfa-hemoglobinemia, não há ligação com o cianeto. O sangue permanece escuro.
  • História familiar: sugere causas congênitas.
  • Fatores sugestivos de potencial metemoglobinemia:
    • Hipóxia que não melhora com progressivo aumento da fração inspiratória de oxigênio (FiO2).
    • Coloração sanguínea amarronzada (cor semelhante a chocolate).
    • Pressão parcial de oxigênio (PaO2) normal apesar de queda da saturação de oxigênio (SatO2).
    • Início de cianose e/ou hipoxia após contato com agentes oxidativos.
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Tratamento

  • Medidas de suporte + descontinuação do fator precipitante.
  • Recomendado que pacientes sintomáticos com níveis de metemoglobina > 20% e pacientes assintomáticos com níveis > 30% recebam tratamento com azul de metileno.
  • Forma congênita tipo I: benigna. Evitar exposição a drogas oxidantes. Tratamento por motivos estéticos: ácido ascórbico 300 a 600 mg, via oral, em 3 a 4 doses.
  • Forma adquirida:
    • Tratamento definitivo: retorno da Hb ao estado não oxidado:
      • Padrão-ouro → azul de metileno.
      • Interage com o Fe3+ para reduzi-lo a Fe2+, restaurando a capacidade de transporte e fornecimento de O2 da Hb aos tecidos.
      • Solução de azul de metileno a 1% (10 mg/mL). Dose: 1 a 2 mg/kg (0,2 mL/kg da solução a 1%) com infusão endovenosa por 3 a 5 minutos. Repetir 1 mg/kg se não houver resolução em 30 minutos.
      • Se em altas dosagens, entretanto, pode ocorrer aumento paradoxal dos níveis de MetHb e hemólise, especialmente em pacientes com deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD).
      • Considerar administração a partir de níveis séricos de MetHb acima de 30% em pacientes assintomáticos, 20% em sintomáticos ou pacientes com comorbidades (anemia, cardiopatias etc.)
    • Se terapia ineficaz, considerar exsanguineotransfusão.
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Prevenção

  • As sopas de vegetais caseiras para a alimentação infantil devem ser consumidas imediatamente após o preparo, pois são ricas em nitratos; o seu armazenamento na geladeira não deve exceder 24 horas, e se necessário maior tempo devem ser congeladas (exemplo desses vegetais são as folhas verdes, como alface, espinafre, salsão, abóbora, batata, cenoura e alho-poró).
  • Evitar exposição a agentes oxidantes, como nitratos, nitritos e medicamentos como dapsona, benzocaína e lidocaína, além de óxido nítrico, que podem ser causa de metemoglobinemia adquirida.

Prescrição na prática
  • Exemplo de prescrição (cada caso deve ser avaliado individualmente e a decisão deve ser tomada pelo médico responsável pelo caso).
  • Lactente de 7 meses, sexo masculino, é levado ao pronto-socorro com história de cianose de extremidades há algumas horas. Família nega sintomas respiratórios ou febre. Nega comorbidades. Relata que a criança realizou o “teste do coraçãozinho” e “teste do pezinho” na maternidade, sem alterações. No interrogatório complementar, queixa apenas de baixa aceitação de dieta pela criança nos últimos dias, por conta do surgimento dos primeiros dentes incisivos, para os quais a família está aplicando um spray anestésico antes das refeições (contendo benzocaína), sem prescrição médica.
  • Ao exame, criança em bom estado geral, com cianose perioral e de extremidades, sem esforço respiratório. Ritmo cardíaco regular, em 2 tempos, sem sopros. Murmúrio vesicular presente bilateralmente, simétrico, ausência de ruídos adventícios à ausculta. Abdome flácido, timpanismo normal, sem visceromegalias. Criança ativa, exame neurológico sem alterações. FC 120 bpm, FR 40 irpm, temperatura 36,5 ºC, SatO2 85%.
  • Optou-se pela administração de O2 via cateter nasal, 1-3 L/min, sem qualquer melhora de saturação. Coletados exames: Hb 13,4 g/dL, Ht 40%, leucócitos 5.400/mm3, plaquetas 202.000/mm3, U 12, Cr 0,4 mg/dL, pH 7,38, PO2 98, PCO2 39, BIC 23. Visto uso de benzocaína tópica e cianose de novo, e foi realizada dosagem de metemoglobinemia: 15%. ECG: ritmo sinusal.
  • Prescrição:
    • Internação hospitalar.
    • Suspensão de utilização de spray contendo benzocaína e atenção para uso de agentes oxidantes na prescrição.
    • Dieta e hidratação via oral com controle de peso de fralda.
    • Monitorização frequente de sinais vitais e sintomas.
    • Controle sérico de metemoglobina em 1 hora.
    • Se sintomas ou aumento dos níveis de metemoglobinemia (> 30%): azul de metileno 1%, 1 mg/kg, endovenoso.
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Referências

  1. Ash-Bernal R, Wise R, Wright SM. Acquired methemoglobinemia: a retrospective series of 138 cases at 2 teaching hospitals. Medicine (Baltimore). 2004;83(5):265-73.
  2. Barakizou H, Chaieb S. Familial Psychomotor Delay of an Uncommon Cause: Type II Congenital Methemoglobinemia. Clin Med Insights Pediatr. 2024;18:11795565241229007. 
  3. Cannata G, Abate L, Scarabello C, Rubini M, Giacometti A, Principi N, et al. The Dose Makes the Poison: A Case Report of Acquired Methemoglobinemia. Int J Environ Res Public Health. 2020;17(6):1845.
  4. Cortazzo JA, Lichtman AD. Methemoglobinemia: a review and recommendations for management. J Cardiothorac Vasc Anesth. 2014;28(4):1043-7.
  5. Fossen Johnson S. Methemoglobinemia: Infants at risk. Curr Probl Pediatr Adolesc Health Care. 2019;49(3):57-67.
  6. Rehman HU. Methemoglobinemia. West J Med. 2001;175(3):193-6.
  7. Sinha N, Lichak B, Thomas NJ, Krawiec C. A Multi-Center Retrospective Database Evaluation of Pediatric Subjects Diagnosed With Methemoglobinemia. Clin Med Insights Pediatr. 2024;18:11795565241271678.
  8. Wright RO, Lewander WJ, Woolf AD. Methemoglobinemia: etiology, pharmacology, and clinical management. Ann Emerg Med. 1999;34(5):646-56.
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